José Maurício Nunes Garcia

Retrato de José Maurício Nunes Garcia.

Hoje vamos falar sobre um compositor brasileiro que foi contemporâneo de Mozart e Haydn, e dedicou toda sua vida àmusica: o padre José Maurício Nunes Garcia.

O Padre José Maurício passou por três fases bem distintas em sua carreira. Até os 32 anos viveu numa colônia; dos 32 aos 46, numa corte europeia – embora deslocada da Europa; e dos 46 aos 62, quando morreu, numa ex-colônia liberta que se intitulava um Império. Gostaria portanto de tratar com um pouco mais de atenção cada um dessas fases.

Apesar de ser descendente de escravos por parte de mãe, José Maurício conseguiu ter acesso a uma boa educação. Estudou música com um mineiro de nome Salvador José de Almeida Faria. É espantoso imaginar como o Brasil daquela época podia gerar compositores e professores de música.

Apesar da precariedade em que se vivia, as partituras europeias aqui chegavam pelas caravelas portuguesas e eram a fonte de estudo dos compositores. Isso acontecia principalmente nas Minas Gerais, onde circulava o ouro. Onde havia ouro, havia novos ricos. E com eles havia o desejo de ostentação, que não dispensava a música. Casamentos, batizados, missas fúnebres, eram enriquecidas com música inédita e tocada por profissionais.

Estudos

Mas voltemos ao padre José Maurício. Além de música, ele também estudou filosofia, retórica e gramática latina com Manoel Inácio da Silva Alvarenga, também mineiro, formado pela Universidade de Coimbra.

José Maurício provavelmente já atuava como músico profissional no Rio de Janeiro desde a adolescência. O que leva a pensar assim é o fato de ter composto sua primeira obra aos 16 anos de idade; e por tratar-se de uma peça sacra, não a escreveu para seu próprio deleite: foi com certeza uma encomenda para algum serviço religioso.

Tota Pulchra es Maria – José Mauricio Nunes Garcia.

Primeira Fase

Um indício seguro de que José Maurício atuava como músico profissional já na adolescência é o fato de sua assinatura constar na ata de criação da Irmandade de Santa Cecília, confraria que reunia os “professores da arte da música” da cidade.

Em 1792, com 25 anos de idade, José Maurício ordenou-se padre. Os estudiosos são unânimes em afirmar que tomou essa decisão menos por vocação e mais por um desejo de afirmação social, pois esse era um dos poucos caminhos abertos para alguém com ascendência negra.

A decisão produziu seus frutos: em 1798, com 31 anos de idade, foi nomeado mestre de Capela do Rio de Janeiro. Deveria, entre outras coisas, escrever música para os serviços religiosos. Estes, diga-se de passagem, eram muitos e frequentes; a tradição católica portuguesa incluía um grande número de festas e cerimônias religiosas durante o ano, muitas das quais toda a cidade se envolvia, e sempre com muita música.

Vamos ouvir uma obra dessa fase da vida de José Maurício: o madrigal Dies Santificatus, cujo texto fala do dia de Natal. A peça foi escrita para coro e orquestra.

Dies Sanctificatus.

Segunda Fase

A segunda fase da vida de José Maurício começa em 1808, com a chegada ao Brasil de D. João VI e sua numerosa corte. Pode-se imaginar que com isso a situação do Padre J. Maurício melhorou. Infelizmente, não. É verdade que D. João reconheceu seu talento e o estimava, tanto que ele chegou a ser condecorado com a Ordem de Cristo, em 1809.

Contudo, J. Maurício foi ofuscado por Marcos Portugal, compositor português que na época desfrutava de fama internacional, tendo várias de suas óperas encenadas na Itália. Ofuscado, diga-se de passagem, não porque Portugal fosse melhor músico, mas por se tratar de alguém muito adulado pelos portugueses à época.

José Maurício enfrentou a inveja de Portugal, o que dificultou muito o seu reconhecimento. Mas por outro lado, estava com 41 anos, no auge da criatividade, e esse período não deixou de ser muito produtivo.

Desse período consta a Missa em Mi bemol também conhecida como Missa Diamantina. Sabe-se que essa obra foi muito tocada durante o século XIX mesmo depois da morte do compositor. Isso porque foram encontradas várias cópias de diferentes no Rio, em Minas Gerais e em São Paulo. Numa época em que não existia xerox, ninguém se empenharia em copiar partituras, se não fosse para efetivamente executar a obra.

Glória – Missa em Mi bemol Maior – de Padre José Maurício Nunes Garcia (1767/1830).

Sigismund Neukomm

Ao mesmo tempo em que notamos a influência italiana, pode-se perceber também a admiração que J. Maurício tinha pelos compositores vienenses, notadamente J. Haydn. Com a chegada da corte portuguesa havia aportado no Rio de Janeiro Sigismund Neukomm, compositor austríaco que havia sido aluno de Haydn.

Diferente do que aconteceu com Marcos Portugal, Neukomm aproximou-se de J. Maurício e entre eles desenvolveu-se uma relação muito cordial. Aliás, de volta a Viena, Neukomm escreveu um artigo para um jornal citando o padre brasileiro como um músico à altura dos grandes de seu tempo.

Réquiem

Com a morte da mãe de D. João VI, D. Maria, conhecida como a Rainha Louca, que aconteceu em 20 de março de 1816, o compositor recebeu a ordem para escrever duas obras em homenagem `a Rainha, um ofício e uma missa de Réquiem. Ocorre porém que no mesmo dia falecia também a mãe do compositor. Não há dúvidas de que foi para esta que J. Maurício escreveu essas duas obras que estão entre as mais belas e expressivas de toda sua produção.

Missa de Réquiem e Oficio faziam parte da liturgia do dia de Finados, ou de um serviço religioso em memória de alguém. No ofício havia as chamadas “Lições”, textos sacros cantados em estilo gregoriano. Após cada “Lição”, vinha uma resposta cantada pelo coro profissional. Essas repostas eram chamadas de “Responsórios”.

O ofício tinha sempre 9 lições e 9 responsórios. E cada responsório tinha uma forma musical muito bem definida: uma primeira parte em andamento lento ou moderado, uma segunda parte em andamento vivo, uma terceira parte novamente em andamento lento ou moderado, e uma quarta parte que era a repetição da segunda.

Como a forma já estava pré-determinada, a principal tarefa do compositor era criar música que sublinhasse adequadamente o texto religioso. E esse ofício 1816 é pleno de momentos de grande expressividade, verdadeiramente pungentes. É uma notável obra de maturidade, quando José Maurício já havia depurado toda a informação que havia recebido tanto do estilo italiano quanto do estilo Vienense.

José Maurício Nunes Garcia, REQUIEM 1816, PHOENIX, Myrna Herzog.

E uma informação: a Missa de Réquiem e o Oficio encomendados às pressas para José Maurício não foram ouvidos na missa de 30 dias de morte Rainha D. Maria I. Essa honra coube ao compositor lusitano Marcos Portugal.

Terceira Fase

A terceira fase da vida do Padre foi um tanto triste. Com a volta de João VI para Lisboa, foram-se com a ele os cantores, os músicos que formavam a orquestra da corte, e o público. Ao mesmo tempo que obtinha sua independência, o novo país contraía dívidas, envolvia-se em guerras, e a decadência musical da corte foi inevitável.

José Maurício entrou em um período de grandes dificuldades financeiras, e chegou a fechar o curso de música gratuito que mantinha em sua casa havia décadas.

Sua última composição, a última encomenda que recebeu, foi a Missa de Santa Cecília, escrita em 1826. É uma obra fabulosa, grandiosa e dificilíssima para os cantores, de quem é exigido alto grau de virtuosismo.

José Maurício Nunes Garcia (1767 – 1830) – Missa de Santa Cecília (1826).

Esta foi a última obra do padre compositor, que viveria ainda mais quatro anos.

Espero que tenha gostado deste post.

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9 comentários em “José Maurício Nunes Garcia”

  1. Maestro, como sabemos pouco dos compositores e da musica brasileira erudita! Obrigada por este texto com ilustrações preciosas do trabalho de José Mauricio Nunes Garcia. Em tempo, imagino que mesmo a vida religiosa não estava muito acessível a descendentes de escravos, e me chamou a atenção o fato dele ter vencido essa barreira. Parabéns!

    1. A música erudita brasileira é fabulosa. Temos artistas invejáveis! Nunes Garcia, se tivesse nascido na Áustria, teria sido um dos grandes de seu tempo. Não sou eu quem diz, mas sim um crítico austríaco que conheceu um pouco de sua música.

    1. Pois é Nancy, segundo Sigismund Neukomm, austríaco e aluno querido de Haydn, José Mauricio foi o maior improvisador ao órgão que ele conheceu. Um compositor fabuloso! Procure ouvir suas obras. Um abraço!

  2. Gostei muito de conhecer este compositor e sua tão bela obra. Estranhei um pouco a ênfase nas hipóteses de que, primeiramente, ele não teria composto a primeira obra para seu próprio deleite, já que era música sacra: se a alma do compositor tende à espiritualudade, seria possível..
    Segunda hipótese que que me parece questionável foi a da opção pela vida sacerdotal por interesse e não por verdadeira vocação; acho difícil, até porque imagino que sem vocação para o celibato e o magistério da fé um brasileiro dificilmente permanecesse fiel por toda a vida, ainda mais numa época em que os apelos mundanos já eram tão convidativos. Tive a impressão de que são afirmações que trazem uma (desnecessária) interpretação dos fatos e de (supostas) motivações que teriam envolvido a vida do artista; que tendem à minimizar ou até desacreditar a importância da vida consagrada e que talvez tenha sido, ao contrário, o motor de tão bela produção musical.

  3. Muito obrigada por enriquecer o nosso conhecimento.
    Confesso que nunca havia ouvido falar desse compositor, com obras belíssimas.

  4. Boa tarde.
    Só agora tive um tempinho para ler e ouvir sua postagem sobre o Pe. José Maurício. Gostei muito. Nada conhecia da sua vida, apesar de ouvir de quando em vez alguma obra desse autor na Rádio Cultura. Muito interessante. As informações dadas pelo sr. são sintéticas, mas muito claras e tocam sempre, sem grandes volteios, nos pontos principais do tema. Espero continuar a recebê-las; serão muito bem vindas!

  5. Que aula! Amei a forma como vc foi construindo o personagem. O pano de fundo, isto é o contexto histórico da formação do compositor negro e pobre revela, o quanto nós brasileiros não valorizamos alguém que não tenha vindo das fileiras da elite. Com certeza ele teria muitos dificuldades em se desenvolver,se não tivesse tido um ” mecenas” como a igreja. Aliás quem não obteve apoio, da igreja para crescer? A Capela Sistina é um excelente exemplo. Obrigada maestro.

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