As Cartas de Beethoven.

Beethoven é talvez o melhor exemplo de uma tendência de todos nós que gostamos de música de concerto. Costumamos pensar nos grandes compositores como se não fossem humanos!

É como se fossem quase deuses, seres especiais dotados de um dom invejável. Homens e mulheres que fizeram sua trajetória nesse mundo sem ter que se importar com as pequenas e mundanas coisas do dia a dia, como as tarefas de subsistência.

Para sairmos desse devaneio, nada melhor do que ler os depoimentos que eles deixaram para a posteridade, em cadernos de anotações, margens de livros, cartas, etc.

Esses depoimentos nos trazem informações curiosas, algumas muito importantes, e outras que podem ser muito divertidas.

Neste artigo, algumas linhas escritas pelo próprio punho de Beethoven!

Beethoven
Beethoven com cerca de 30 anos.

Bilhetes enviados a Hummel.

Vamos começar com dois bilhetes de Beethoven, enviados ao colega pianista e compositor Johann Nepomuk Hummel. São muito divertidos!

O 1º bilhete diz o seguinte:

” Não se atreva a procurar-me de novo! És um cão traiçoeiro e que a carrocinha carregue os cães traiçoeiros”

No dia seguinte Beethoven escreveria a Hummel este segundo bilhete…

“Ceninho do meu coração,

Você é um sujeito correto, reconheço que vc estava com a razão; venha, pois, hoje de tarde em casa, Schuppanzigh também estará aqui. Vamos repreendê-lo, amassá-lo e despedaçá-lo de tal maneira que ele vai achar uma delícia.

Beijos do seu Beethoven.”

Mas quem foi Hummel?

Johann Nepomuk Hummel viveu entre 1778 e 1837, tendo nascido 8 anos depois de Beethoven.

Hummel, pianista e compositor,

Foi pianista e compositor muito admirado em seu tempo, embora hoje seja conhecido por poucos.

Hummel foi aluno de Mozart e grande amigo de Beethoven.

E quem foi Schuppanzigh?

Agora vamos ver quem foi Schuppanzig, a quem Beethoven se refere.

Schuppanzigh

Ignaz Schuppanzigh viveu entre 1776 e 1830; era um violinista que se estabeleceu como virtuoso com apenas 21 anos de idade. Foi professor de violino de Beethoven e mantiveram-se amigos por toda a vida.

Apesar de desconhecido, teve um papel importantíssimo na evolução da música européia: foi o líder do primeiro quarteto de cordas profissional da história, o quarteto do Conde Razumovsky.

Antes a música para quarteto de cordas era sempre tocada por amadores.

Beethoven dedicou a Schuppanzigh três quartetos magníficos, os de opus 59 nº 1, 2 e 3, conhecidos justamente por Quartetos Razumovsky.

Cartas para os editores.

Vamos agora a outro capítulo da comunicacão epistolar Beethoveniana: as cartas, muitas, que ele enviava para seus editores.

Neste caso o destinatário era Franz Anton Hoffmeister, e a carta foi enviada em janeiro de 1801.

“… estou às suas ordens e lhe ofereço no momento as seguintes obras:

– o septeto de que lhe fiz menção e que pode ser transcrito para o piano a fim de se obter uma divulgação mais ampla e um lucro maior, por vinte ducados.

– a Sinfonia por vinte ducados.

– o Concerto para piano por 10 ducados.

– grande sonata solo, por vinte ducados.

E agora vamos aos comentários: deve estar espantado por eu não fazer nenhuma distinção entre sonata, septeto, sinfonia quanto ao preço.

Faço-o assim porque sei muito bem que há menos procura por septetos ou sinfonias que por uma sonata, embora uma sinfonia valha muito mais.

Peço apenas 10 ducados pelo concerto porque não o coloco entre minhas obras mais bem sucedidas…”

Veja só aqui caro leitor, um exemplo da severa autocrítica de Beethoven, desmerecendo uma de suas próprias obras.

Beethoven estava se referindo ao concerto para piano nº 1, opus 19, em si bemol maior, que hoje esta catalogado como nº 2

E acrescentava:

“Deveria haver um único mercado de arte no mundo; o artista simplesmente mandaria para lá as suas obras e receberia tanto quanto necessita; da maneira como as coisas são, cada um deve ser meio comerciante acima de tudo….”

E aqui vemos o outro lado: a luta de Beethoven para manter-se como artista independente, vivendo apenas de suas composições.

Na época ainda não havia lei nem arrecadação de direitos autorais; o compositor vendia sua obra por uma quantia específica e não recebia mais nada por ela.

Aliás, este editor com quem Beethoven se comunicou, Franz Anton Hoffmeister, era também compositor. Ele viveu entre 1754 e 1812, deixou 8 óperas, mais de 50 sinfonias, muitos concertos e música de câmara.

Hoffmeister,
Franz Anton Hoffmeister.

Beethoven Marqueteiro?

Seguimos com outro trecho de uma carta enviada ao mesmo Franz Anton Hoffmeister, em abril de 1802.

Ele mostra como já naquela época os editores sucumbiam a toda idéia marqueteira que surgisse e pudesse render um bom dinheiro…

Assim diz Beethoven:

“Será que o diabo está cavalgando na cabeça dos senhores, cavalheiros?

Sugerir que eu deveria escrever uma sonata revolucionária? No tempo da febre revolucionária teria valido a pena considerar a proposta, mas agora, que todas as coisas estão tentando voltar à velha rotina, agora que Bonaparte fez sua concordata com o papa ….nesse caso eu empunharia uma pena e confiaria ao papel um Credo com notas enormes que valeriam uma libra cada.

Mas bom Deus, uma sonata dessa espécie no começo de uma nova era cristã…oh!oh!…. excluam-me disso, pois não resultará em nada!”

Em lugar da tal sonata revolucionária Beethoven escreveu sua belíssima sonata opus 22, e a dedicou a um aristocrata, o conde Bowne.

Fala um aluno de Beethoven.

Vejamos agora não um depoimento do próprio Beethoven, mas de um grande músico que foi muito ligado a ele: Carl Czerny.

Czerny, aluno de Beethoven
Carl Czerny

Czerny é muito conhecido por todo mundo que estudou piano. Ele deixou vários trabalhos pedagógicos, livros com exercícios e estudos para jovens pianistas, que são usados até hoje.

Czerny era vienense, viveu entre 1791 e 1857, e foi aluno de Beethoven.

Eis o que ele deixou escrito sobre seu mestre.

“Encontrei-me pela primeira vez com Beethoven por volta 1798 ou 1799. Tinha 7 ou 8 anos de idade.

Ainda naquela época, entre 1798 e 1799, o mestre não dava o menor sinal de ter dificuldade de audição.

Ele pediu-me para executar algo imediatamente, e tive muita vergonha de começar por uma de suas composições. Então toquei o grande concerto em do maior de Mozart.

Beethoven ficou atento, aproximou-se da minha cadeira e, nas passagens em que me cabia tão somente o acompanhamento, tocou o tema da orquestra na mão esquerda. Suas mãos eram densamente cobertas de pelos, e os dedos, sobretudo nas pontas, eram muito largos.

Quando Beethoven exprimiu sua satisfação, revesti-me de coragem e toquei sua Sonata Patética, que acabara de ser publicada. Quando encerrei, Beethoven virou-se para o meu pai dizendo-lhe: ” o garoto tem talento, eu próprio lhe darei aulas. Mande-o a minha casa uma vez por semana”.

Czerny estudou com Beethoven por 3 anos, e em seguida tornou-se seu assistente e profundo conhecedor da obra do mestre. Era capaz de tocar de memória tudo o que Beethoven havia escrito para piano.

Czerny é o pai da moderna técnica pianística, e é a raiz de várias gerações de pianistas, que chegam até os dias de hoje.

Um exemplo: o maestro e pianista Daniel Barenboim, diretor da Ópera de Berlim, estudou piano com Edwin Fischer, que foi aluno de Martin Krause, que foi aluno de Liszt, que foi aluno de Czerny.

Segue mais um depoimento escrito deixado por Czerny.

“Nas primeiras aulas Beethoven manteve-me ocupado apenas com as escalas em todas as claves, mostrou-me a única posição correta das mãos, que era ainda desconhecida da maioria dos músicos da época, a posição dos dedos, e particularmente o modo de usar o polegar – regras cuja utilidade não avaliei plenamente senão muito tempo depois. Então me fez tocar os exercícios do manual e, principalmente, chamou minha atenção para o legato, que ele próprio dominava de maneira tão incomparável, e que naquela época todos os outros pianistas consideravam inconcebível…”

A Sinfonia Pastoral.

Vamos agora ouvir o que Beethoven pensava sobre sua Sinfonia Pastoral, a partir de um texto que ele deixou registrado em um de seus muitos blocos de anotações.

“Deixe-se ao ouvinte que descubra a situação. Sinfonia característica ou uma reminiscência da vida campestre. Todo tipo de descrição perde muito ao ser transladada em demasia na música instrumental.

Qualquer um que possua a mais tênue idéia da vida campestre não precisará de muitas notas escritas para poder imaginar por si próprio o que o autor pretende. Mesmo sem descrições poderá reconhecer tudo, pois se trata de um registro de sentimentos, em vez de uma descrição em sons.”

É Beethoven nos dizendo que a escuta musical deve ser ativa, participativa. Enquanto ouve, o ouvinte deve deixar sua imaginação trabalhar. A grande música não foi mesmo feita para entrar por um ouvido e sair pelo outro.

A Sinfonia Pastoral é a única que tem um título para cada movimento, criado pelo próprio Beethoven.

São eles:

  1. “Despertar de sentimentos alegres diante da chegada ao campo”
  2. “Cena à beira de um regato”
  3. “Dança campestre”
  4. “A tempestade”
  5. “Hino de ação de graças dos pastores, após a tempestade”

Assim, sugiro ao leitor que sintonize sua mente, imagine que está num campo florido em uma bela manhã de primavera, enquanto ouve o delicado 5º movimento da encantadora Sinfonia Pastoral de Beethoven.

É só clicar no link abaixo!

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32 comentários em “As Cartas de Beethoven.”

  1. Egrégio Mº. Galindo,
    É sempre um prazer ler suas palavras. Não me refiro apenas à clareza da escrita – que é agradabilíssima, mas também ao conteúdo que elas encerram.
    Sobre uma linha melódica “missivista” nos apresenta quatro personagens que fizeram parte da vida de Beethoven. E tendo como “coda” o 5º mov. da Sinfonia Pastoral ….Fantástico!!!
    Grande abraço,
    Mônica

  2. Encantadora melodia!
    O mestre Beethoven é sempre insuperável em suas composições.
    Obrigada pela magnífica interpretação, Mr.Galindo.

  3. Mestre Galindo, seu artigo é brilhante pois aborda de maneira quase completa a complexidade da natureza humana. Praticamente todos os aspectos da vida em sociedade foram bem descritos neste texto de forma leve e escorreita.
    Gostaria de saber se há como eu ter acesso a outros artigos que foram escritos pelo senhor?Tenho um interessante muito especial pela vida dos grandes compositores e instrumentistas clássicos.
    Meus parabéns pelo excelente texto.
    Grande e afetuoso abraço.

    1. Olá professor Hess.
      Muito obrigado pelo sei generoso comentário.
      Todos meus artigos estão sendo colocados aqui.
      Além disso, o senhor pode me acompanhar pela Rádio Cultura FM de São Paulo, onde tenho dois programas:
      http://culturafm.cmais.com.br/encontro-com-o-maestro
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      E finalmente, se for do seu interesse, poderá adquirir meu livro, “Beethoven, as muitas faces de um gênio”. Se comprar pelo link que está aqui no meu site, me ajuda a propagá-lo. E não paga nem um centavo a mais por isso.
      Ei-lo: https://amzn.to/2O1QSO8

      Saudações Musicais do maestro J M Galindo

  4. Olá Maestro Galindo. Em 2005 li a Biografia de Bethoven escrita por Lewis Lockwood. Um calhamaço de 670 páginas. Essas suas considerações sobre as cartas do Grande Mestre me fez voltar a lê-la novamente e ouvir a Pastoral. Muito bom!!!. Feliz Natal!!

    1. Olá João! Obrigado por seu comentário! Não conheço esta biografia, vc me deu uma ótima dica! Bom final de ano para você, e apareça sempre! Abraço!

  5. Caro maestro,

    Parabéns pelo seu compromisso com a música e pelo prazer em falar dela!

    Muito obrigado por esses artigos!

    Eu acho incrível conhecer como era a vida dos compositores, suas ideias, falas e etc. Que oportunidade!

    Obrigado!

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