Liszt e a Música Sacra

Retrato de Franz Liszt (1811-1886) pot Henri Lehmann

Uma personalidade fascinante por suas contradições, Liszt tinha um lado fortemente ligado às coisas terrenas – inúmeros casos amorosos, fascínio pela música dos ciganos – e uma premente necessidade de desenvolvimento espiritual.

Várias vezes durante sua vida pensou seriamente em tornar-se padre, chegando mesmo, na velhice, a receber as ordens menores da Igreja Católica.

Durante os últimos anos de sua vida, Liszt ocupou-se principalmente de música sacra.

O Sacro e o Profano

Alphonse de Lamartine por Théodore Chassériau

Aos dez anos de idade Liszt mudou-se de uma pequena cidade no interior da Hungria para Viena, a capital do império austro-húngaro, onde estudou piano com Czerny e composição com Salieri. Lá deu seu primeiro concerto público, com grande sucesso, pouco depois de ter completado 11 anos.

No ano seguinte mudou-se para Paris, continuando seus estudos de piano e composição. Suas primeiras composições foram obras virtuosísticas para piano, baseadas em melodias extraídas de óperas de Rossini e Spontini. Virtuosismo e entretenimento. Mas logo ele iria começar a escrever peças mais sérias, e em 1834, quando tinha 23 anos, escreveu finalmente uma obra que demonstrava sua maturidade e personalidade: as Harmonias Poéticas e Religiosas.

Não se trata de uma obra de música sacra tradicional, feita para ser tocada em um culto ou serviço religioso; é uma peça para piano solo, e não há nenhum texto religioso para ser cantado. Mas é interessante como Liszt, ao escrever sua primeira obra pessoal, procura olhar para os dois universos de sua personalidade, o sacro e o profano.

A obra é inspirada em uma coleção do poeta francês Lamartine, que viveu entre 1790 e 1869, e cujas obras exerceram um papel importantíssimo no desenvolvimento do Romantismo em toda a Europa.

Harmonias Poéticas e Religiosas

Quem ouve a peça de Liszt sem prestar muita atenção pode ter a impressão de que se trata de um pianista improvisando. Durante a maior parte dela não há um ritmo definido, as suas diferentes seções não são repetidas, nem desenvolvidas. Procuram levar o ouvinte a diferentes estados de espírito, talvez do mesmo modo como faria a leitura de um poema – ou deste poema de Lamartine, em particular.

Mas por entre as fibras dessa mutação musical constante há uma pequena célula que sempre retorna. É ela que dará alguma unidade à peça, fazendo uma espécie de contrapeso para essa liberdade improvisória.

Liszt – Harmonies poétiques et religieuses, S154 (Dráfi)

Caso procure adquirir um CD com a obra acima, poderá encontrar uma outra obra, completamente diferente, muito mais longa, com cerca de uma hora de duração. É que Liszt compôs, 13 anos mais tarde uma outra obra com o mesmo título.

Música Religiosa

Il Concerto di Natale nella Basilica di Sant’Anastasia FOTO BRENZONI

Vamos à música sacra de Liszt, em senso estrito. A primeira peça do gênero que ele escreveu foi um Tantum Ergo, cuja partitura se perdeu. Tinha 11 anos. Ou seja, desde cedo esse gênero tomava sua atenção.

Mas a produção de música religiosa tomou um real impulso a partir dos seus 30 anos de idade, escrevendo um grande número de obras, desde grandes oratórios, até pequenos motetos, para voz solista acompanhada, coro sem acompanhamento, coro e órgão e coro e orquestra.

Liszt tinha objetivos muito claros, e queria mesmo provocar uma revolução na música sacra de seu tempo, que ele considerava constrangedoramente sentimental.

Defendia substituir a “emoção barata” por uma verdadeira introspecção religiosa. Liszt dizia que “se as palavras não são suficientes ou adequadas para conduzir o verdadeiro sentimento religioso, a música lhes transfigura e lhes dá asas”.

Canto para o Sol de São Francisco de Assis

O “Canto para o Sol de São Francisco de Assis” é outra obra notável. Há duas versões dela, uma para barítono e orquestra e outra para barítono e órgão. É esta segunda:

Liszt: Canto do sol

Christus

Vejamos agora o oratório Christus, uma obra gigantesca, que dura mais de duas horas e meia.

Ela é dividida em três grandes partes: a 1ª é um oratório de Natal, ou seja, trata do nascimento de Jesus, a 2ª refere-se a algumas passagens de sua vida, e a 3ª é a paixão, sua morte e ressureição.

O célebre filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ao ouvir um trecho da obra, em 1867, declarou que Liszt havia encontrado o caráter da excelência do Nirvana.

I. Weihnachts-Oratorium: No. 2 Pastorale und Verkündigung des Engels
III. Passion und Auferstehung: No. 13 O filii et filiae (Easter Hymn)
III. Passion und Auferstehung: No. 14 Resurrexit

Nessa obra gigantesca e admirável, Liszt procurou unir o mais refinado artesanato musical com verdadeira devoção religiosa. Para quem gosta de música sacra fica aqui a dica de conhecer a obra na íntegra. É uma tarefa para se fazer aos poucos, pois são 2 horas e 40 minutos de música, que resumem toda a vida de Jesus Cristo.

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Saudações Musicais!

Carnaval

Existe música clássica de carnaval?

De início podemos pensar que a música de concerto e a esta festa extremamente popular não têm absolutamente nada a ver, mas pesquisando um pouco descobrimos que isso não é verdade.

Há, sim, no repertório erudito várias obras importantes que se referem ao Carnaval.

Nós brasileiros nos sentimos tentados a achar que o nosso carnaval é uma festa única, diferente de tudo que se faz no mundo. Contudo, por mais que o carnaval do Brasil seja mesmo muito especial, não devemos nos esquecer de que ele é uma festa universal e muito, muito antiga.

Saturnália

Suas origens são pré-cristãs. Alguns estudiosos acham até que elas remontam aos bacanais romanos; outros vão além, associando-o a festas em louvor a deuses egípcios, que teriam sido importadas pelos romanos.

Em Roma havia uma festa chamada Saturnália, em que um carro na forma de um barco desfilava em meio a uma multidão que usava máscaras e fazia muitas brincadeiras. São elementos que nosso carnaval mantem até hoje.

Carnaval Romano

Caricatura de Berlioz

“Carnaval Romano”, do compositor francês Hector Berlioz, é uma abertura sinfônica pura, ou seja, não foi composta para abrir uma ópera ou ballet, mas como peça de concerto independente. Foi escrita em 1843 e executada pela primeira vez em 1844.

Ela leva esse nome porque Berlioz utilizou nela temas de uma outra obra sua, a ópera Benvenuto Cellini, na qual há uma cena de carnaval. O tema principal pertence justamente a esta cena.

Ela começa com um impetuoso ritmo de tarantella, mas logo surge uma longa melodia lenta dedicada ao corne-inglês. Apesar desta melodia em particular ser melancólica, a abertura tem um tom geral bastante alegre, terminando esfuziantemente, e justificando plenamente a fama que Berlioz tem de ser um dos melhores orquestradores de todos os tempos.

Berlioz: Le carnaval romain ∙ hr-Sinfonieorchester ∙ Alain Altinoglu

Roma à Idade Média

Enquanto a religião cristã se expandia pela Europa, alguns papas procuraram combater os festejos romanos. Outros foram mais tolerantes, talvez intuindo que seria melhor permitir que tais festas existissem para em seguida iniciar-se um período de recolhimento: a quaresma.

A quaresma se estabeleceu definitivamente no ano de 1091, e em consequência disso estabelece-se também o Carnaval.

Com o Renascimento, no século XVI, surgem os bailes de máscaras, as fantasias e os carros alegóricos. Isso se mantém até hoje em diversos locais, sendo célebres as festas em Veneza, na Alemanha, Espanha, e na França, onde o carnaval costuma ser chamado de Mardi Gras, ou terça-feira gorda.

Natureza, Vida e Amor

No século XIX, o compositor tcheco Antonin Dvorak trabalhou com o tema “Carnaval” de uma maneira muito e interessante.

Ele concebeu um tríptico, sendo cada peça uma abertura sinfônica, que chamou de “Natureza, Vida e Amor”.

Antonin Dvorak

A primeira das obras, opus 91, Dvorak deu o nome de “Em meio à natureza”. Sua ideia era referir-se à natureza como manifestação direta de Deus.

Em seguida contrapõe-se a ela a vida humana, e para essa peça Dvorak escolheu o título de Carnaval. Estão aqui o divino e humano justapostos. Finalmente, a terceira peça, opus 93, que se refere ao amor, Dvorak deu o nome de Otelo, numa referência ao fantástico drama de Shakespeare.

Embora a rigor essas três obras sejam em verdade poemas sinfônicos brilhantemente organizados em um tríptico, elas são, como eu disse, habitualmente tocadas em separado. Neste caso, costuma-se chamá-las de Aberturas.

Momoprecoce

Falando sobre o Carnaval na música de concerto, não poderíamos deixar de mencionar algum autor brasileiro. Villa-Lobos faz referência a esta grande festa com “Momoprecoce”, para piano e orquestra, composta em 1929.

Mas se falamos de Momoprecoce, temos antes que falar de uma outra obra de Villa-Lobos, uma suíte de 8 pequenas peças para piano intitulada “Carnaval das Crianças Brasileiras”. Ela retrata um pequeno bloco carnavalesco composto por crianças fantasiadas.

A primeira é O Ginete do Pierrozinho; descreve um pierrozinho cavalgando seu cavalinho de madeira. Em seguida, o menino fantasiado de dominó se diverte com seus guizos barulhentos. São Os guizos do Dominozinho. No final, várias crianças fantasiadas saem em bloco: é a “Folia de um bloco Infantil”.

A obra foi escrita em 1920, e em 1929 Villa-Lobos retrabalhou todos os seus temas para criar uma outra obra de grande envergadura, um verdadeiro concerto para piano e orquestra que se tornaria uma de suas mais tocadas obras sinfônicas.

Batizou-a de “Momoprecoce” que viria a ser gravada por muitos pianistas de todo o mundo.

Villa-Lobos – Momoprecoce – Fantasia para Piano – Parte 2 – Cristina Ortiz e Roberto Tibiriçá

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Motetos de Bach

Afinal, o que é um moteto? O que quer dizer essa palavra? Moteto é um termo genérico, usado para designar obras vocais.

Digo genérico porque ele se refere a obras dos mais variados estilos e épocas. Começou a ser usado na França no século XIII, e manteve se em uso até o final do século XIX.

Se voltarmos bastante no tempo veremos que até o século XIII as obras vocais polifônicas eram sempre religiosas, e baseadas nos chamados cantos gregorianos. Pois bem, por volta do ano de 1250 os compositores que trabalhavam na catedral de Notre Dame de Paris começaram a fazer experiências, acrescentando outras palavras ou textos às obras vocais que compunham.

Era muito curioso, porque pode-se encontrar uma obra a três vozes, a mais grave cantando um canto gregoriano tradicional em latim, e as duas outras cantando outros textos, muitas vezes em outras línguas.

Mot

Palavra, em francês, escreve-se mot. Daí vem o termo “moteto”, para designar esse novo tipo de composição, em que o uso das palavras era uma grande novidade.

Com o passar do tempo o uso das palavras se modificou, o gênero evoluiu, transformou-se. Compositores de estilos muito diferentes, desde a renascença até o alto romantismo, escreveram obras vocais polifônicas, como Machaut, Dufay, Palestrina, Scarlatti, Gabrieli, Lully, Mozart, até Brahms e Bruckner.

É um repertório muito diversificado, mas curiosamente a palavra moteto se manteve em uso durante todos esses séculos. Hoje veremos os Motetos de Bach.

Finalidade

Bach escreveu seis motetos – talvez tenha escrito mais; estes foram os que chegaram até nós. Os musicólogos discutem até hoje o motivo pelo qual Bach teria escrito essas peças.

No século XIX alguns acreditavam que eram peças didáticas, destinadas a treinar o coro que Bach liderava na Igreja de São Tomás, em Leipzig.

Outros achavam que eram peças usadas em alguns cultos, no lugar das cantatas tradicionais, que além de coro têm também trechos solistas.

Hoje a tendência é crer que foram escritas para ser executadas em cerimônias fúnebres de importantes cidadãos de Leipzig.

Preservação

A Escola de São Tomás atua até hoje e tem vários coros em funcionamento. Ela foi fundada em 1212 pelos Agostinianos e é uma das mais antigas escolas do mundo.

Pois bem, depois da morte de Johann Sebastian Bach, seus motetos continuaram a ser apresentados pelo Coro da Escola de São Tomás de Leipzig, onde o grande compositor havia trabalhado entre 1723 e 1750.

Em 1789 Wolfgang Amadeus Mozart assistiu uma apresentação do coro cantando alguns motetos de Bach e declarou que essa foi uma experiência marcante para ele.

Algum tempo mais tarde a recém fundada Academia de Canto de Berlim começou a estudar os Motetos de Bach, e os incorporou definitivamente ao seu repertório. Através de fatos como esses os motetos e toda a obra de Bach se manteve preservada dentro do meio musical, e pode vir a público no final do século XIX, para nunca mais ser esquecida.

Encanto

Carl Maria von Zelter foi diretor da Academia de Canto de Leipzig; compositor, professor de grande reputação, com alunos como Felix Mendelssohn, uma vez escreveu uma carta ao grande poeta Johann von Goethe, na qual dizia:

Se num dia feliz eu pudesse fazê-lo ouvir um dos motetos de Bach, você se sentiria no centro do universo, como se você pertencesse a ele. Eu já ouvi essas obras centenas de vezes, e estou ainda muito longe de me cansar delas; na verdade, creio que nunca me cansarei.

Singet der Herrn ein neues Lied

Singet der Herrn ein neues Lied: Cantai ao Senhor uma nova canção.

Bach: Motet ‘Singet dem Herrn ein neues Lied’ | RIAS Kammerchor, Akademie für Alte Musik, Rademann

Jesu meine Freude

Um trecho do texto do moteto: Jesu meine Freude, ou Jesus minha alegria:

Jesus, minha alegria,
prado do meu coração,
Jesus, meu tesouro,
Ah, quanto tempo, quanto tempo
anseia o coração
Deseja ardentemente e te!
Cordeiro de Deus, meu esposo,
Nenhum outro sobre a Terra
pode me ser mais caro do que tu!

Bach: Motet BWV 227 ‘Jesu, meine Freude’ – Vocalconsort Berlin

Este moteto é bem mais austero e também mais longo, exigindo uma escuta mais atenta, mais introspectiva.

Tem 11 movimetos e foi escrito para coro. Contudo, segundo a prática da época, poderia ser acompanhado por instrumentos tocando colla parte, ou seja, duplicando as linhas vocais.

Algumas execuções são feitas assim, acrescentando-se instrumentos, e outras apenas com coro a cappella.

Fürchte dich nicht, ich bin bei dir

Fürchte dich nicht, ich bin bei dir, ou em português: Não tenha medo, eu estou ao seu lado.

Bach – Motet Fürchte dich nicht, ich bin bei dir BWV 228 – MacLeod | Netherlands Bach Society

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Inspiração em Rossini

No mundo da música de concerto sempre foi muito comum um compositor escrever obras a partir de melodias ou temas de outro compositor. Às vezes, quem não está habituado, até chega a pensar em plágio. Mas não é nada disso. No plágio, um músico está fazendo uma falsificação, normalmente com a intenção de ganhar dinheiro com isso.

Nos casos a que eu estou me referindo, o compositor está externando sua admiração pelo outro, e até mesmo fazendo-lhe uma homenagem. Vamos ver algumas obras inspiradas num dos mais admirados e populares compositores europeus de todos os tempos: Gioacchino Rossini.

Fama

Rossini foi um fenômeno, um furacão musical que varreu a Europa e deixou sua marca para sempre. Seu primeiro sucesso foi a ópera Tancredi, estreada em 1813. Algumas de suas melodias se tornaram tão populares que passaram a ser cantadas pelos italianos em toda a parte, até nas ruas.

Rossini era um jovem de 21 anos. E com apenas 37 anos de idade, rico e internacionalmente famoso, Rossini pode se dar ao luxo de terminar sua carreira de compositor de óperas. Mas suas melodias estão até hoje na mente de milhares de pessoas, tornando-se inesquecíveis.

Niccolò Paganini

Essas melodias inspiraram muitos outros compositores, entre eles seu conterrâneo e contemporâneo Niccolò Paganini. Paganini escreveu várias obras a partir de melodias de Rossini, e a mais conhecida talvez sejam as variações sobre Dal tuo stellato soglio, da ópera Moisés no Egito.

Eis a melodia, como aparece na ópera.

Dal tuo stellato soglio – Rossini 

E agora, as variações de Paganini.

Paganini – Introduction and Variations on “Dal tuo stellato soglio” from Rossini’s Moses in Egypt

E quero aproveitar para destacar alguns dos efeitos especiais que Paganini extrai do violino nessa peça.

Primeiro, os sons “harmônicos”, um efeito produzido quando os dedos da mão esquerda não pressionam a corda, mas apenas tocam-na com muita leveza. O resultado é semelhante a um assobio.

E o efeito produzido quando se toca com o arco em cima do cavalete – aquela pecinha que sustenta a corda. Em italiano se diz “ponticello”. Esses efeitos, muito conhecidos hoje, eram novidade na época de Paganini, e ajudaram a fazer sua fama.

Bohuslav Martinu

Continuemos com Rossini por outros compositores; agora temos um que não foi nem seu conterrâneo, nem seu contemporâneo. Trata-se do checo Bohuslav Martinu, que nasceu em 1890, cerca de 100 anos após Rossini e Paganini.

Martinu foi certamente um dos maiores compositores checos de todos os tempos; e veremos dele as Variações sobre um Tema de Rossini, opus 290, para violoncelo e piano.

A obra é curiosa porque Martinu se baseia nas variações de Paganini citadas acima, mas em vez de usar como tema a melodia original de Rossini, usa a 1ª variação de Paganini.

Bohuslav Martinů – Variations On A Theme of Rossini, H. 290, from SMALL STORMS

Vemos então como um compositor inspira um outro, como uma obra deriva de outra. A melodia original de Rossini motivou Paganini a escrever uma obra, que por sua vez inspirou Martinu a escrever outra.

Benjamin Britten

Mas vamos em frente, ficando no século XX, com o compositor britânico Benjamin Britten. Britten foi um jovem muito precoce e determinado.

Conta-se que quando ele tinha apenas 17 anos, lhe perguntaram qual seria sua profissão, ao que ele respondeu: vou ser compositor. Então seu interlocutor insistiu: sim, mas para ganhar dinheiro você vai fazer o quê?”

A pergunta tinha razão de ser; o compositor norte-americano Charles Ives era vendedor de seguros; Borodin era químico; Tchaikovsky era funcionário público; muitos, como Mahler, eram regentes, outros, como Cherubini e Chopin, professores.

Nunca foi fácil ganhar a vida apenas como compositor. Mas era isso o que Britten estava determinado a fazer; e foi atrás do seu sonho.

Assim, um de seus primeiros empregos consistiu em fazer trilhas sonoras para pequenos filmes. Então, em 1936 foi-lhe encomendado compor a trilha de um documentário chamado “Homens dos Alpes”. Para ele, Britten decidiu orquestrar algumas peças de Rossini.

March

Primeiro, uma marcha que faz parte da ópera Guilherme Tell. Ela está no 3º ato, e tem o título original em francês “Pas de Soldats”.

Guillaume Tell, Act III: Pas de Soldats (Orchestre)

Agora a reorquestração feita por Britten. Chamo a atenção para a imensa diferença entre uma formação orquestral típica do início do século XIX, e outra mais de cem anos à frente: são sonoridades bem distintas.

Britten: Soirées musicales, Op. 9 – 1. March

Canzonetta

Veremos a peça que Britten chamou de Canzonetta; no original de Rossini ela é uma canção chamada La Promessa. Essa canção não faz parte de nenhuma ópera, mas de uma coleção chamada “Soirées Musicales”.

Rossini: Soirées musicales – 1. La promessa
Britten: Soirées musicales, Op. 9 – 2. Canzonetta

Podem pensar: mas maestro, era a mesma música? Era, caro leitor, e o fato da versão de Britten ser bem mais lenta que a de Rossini faz com que a gente até tenha a impressão de que são peças diferentes.

Na verdade, Britten não faz a música ficar mais lenta, apenas; ele modifica o ritmo radicalmente, criando um ambiente completamente distinto do da peça original. Os momentos dramáticos do original de Rossini desaparecem, dando lugar a um espírito totalmente contemplativo.

Tirolesa

Outra canção de Rossini, da mesma coleção “Soirées Musicales”, chamada “Pastorella dell’Alpi”, ou em português, a Pastorinha dos Alpes.

Aqui Britten não nos surpreende, como no caso anterior; ele mantém o delicioso caráter de dança popular da canção original. É um show de orquestração, com os mais variados efeitos orquestrais muito bem explorados.

Rossini:: La Pastorella Delle Alpi
Britten: Soirées musicales, Op. 9 – 3. Tirolese

Bolero

E da mesma coleção “Soirés Musicales” a canção L’invito – O Convite”, em português.

Rossini: L’Invito

Não sei se você vai concordar, mas Britten achou que se tratava de um Bolero, e foi esse o nome que ele deu à sua versão orquestral, há até castanholas….

Britten: Soirées musicales, Op. 9 – 4. Bolero

Seria originalmente um bolero? Ou essa “bolerização” foi uma licença poética do compositor? Fica a questão pra gente pensar…

Tarantella

Vamos à última dobradinha Rossini – Britten; e mais uma vez o compositor britânico brinca com os ritmos.

Ele partiu de uma peça de caráter religioso: La Carità, para coro e piano, e não teve nenhum pudor em transformá-la em uma autêntica…. Tarantella!

“La Carita” by Gioachino Rossini
Britten: Soirées musicales, Op. 9 – 5. Tarantella

Aqui a diferença de caráter entre as duas obras é tamanha que não seria exagero dizer que a peça de Britten não é apenas uma orquestração da de Rossini, mas sim uma autêntica variação daquela.

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Sinfonia Concertante

Volta e meia alguém me pergunta o que é uma Sinfonia Concertante; é mais concerto que sinfonia? Ou está mais para uma sinfonia que para um concerto? Hoje vamos acabar com essa dúvida e saber mais algumas coisas a respeito desse gênero musical.

Para começar, não custa nada relembrarmos a diferença entre uma sinfonia e um concerto. Quando se fala em sinfonia, a primeira coisa que vem à mente é a Orquestra. A Sinfonia é, portanto, uma obra musical escrita para ser tocada por uma orquestra.

Concerto

Já quando o assunto é Concerto, além da orquestra, temos a figura do solista – aquele músico que se destaca da orquestra e é acompanhado por ela. Além disso, o solista tem que ser um músico excepcional, que encanta o público com suas habilidades técnicas e artísticas. Assim, não seria errado dizer que a grande diferença entre concerto e sinfonia é mesmo a presença do solista.

Esses dois gêneros são obras em 3 ou 4 movimentos, na maioria dos casos; como se fossem capítulos de um livro; e esses movimentos devem ser sempre contrastantes. Se o 1º for rápido, o 2º será em andamento mais lento; se o 1º é alegre, pra cima, o 2º deve ser mais tranquilo.

Então surge de repente essa tal de sinfonia concertante, para confundir dois conceitos que são tão precisamente distintos… palavras, palavras, palavras… o jargão musical é realmente confuso e impreciso.

Origem

Vamos então direto ao ponto: a Sinfonia Concertante é um concerto; um tipo específico de concerto, que surgiu na França, ou sendo mais preciso, em Paris, por volta de 1767. É uma variante francesa do concerto clássico. Ele tinha as seguintes características:

1ª Era um concerto em que atuavam pelo menos dois solistas, como dois violinos, um violino e um violoncelo, um oboé e um fagote, uma flauta, um oboé e um violoncelo, e assim por diante. Várias combinações foram experimentadas, mas sempre com mais de um solista.

2ª A maioria das sinfonias concertantes francesas tinha apenas dois movimentos – diferente dos concertos conhecidos, que sempre tinham pelo menos três.

3ª Elas sempre música agradável e leve; nada de emoções profundas ou estados de espírito sombrio. Quando uma sinfonia concertante tinha três movimentos, aí sim, nesse caso, um deles era lento; mas mesmo assim, era relaxado e gracioso, nunca dramático.

Giuseppe Maria Cambini

Vamos então a um exemplo, uma Sinfonia Concertante para oboé, fagote e orquestra, em dois movimentos, Allegro e Allegretto, de autoria de Giuseppe Maria Cambini… Mas acabei de dizer que a Sinfonia Concertante é um gênero francês, e começo com um compositor italiano? Pergunta oportuníssima. Mas sugiro ouvirmos a música, e depois eu explico.

Giuseppe Cambini – Sinfonia Concertante No.5 for Oboe and Bassoon in B-flat major

E agora vamos ao compositor, Giuseppe Maria Cambini, que nasceu em 1746 na cidade toscana de Livorno. Com 27 anos ele mudou-se para Paris, e bastou que uma de suas sinfonias fossem tocadas em público, para agradar em cheio o público da capital francesa. Lá ele se fixou, produzindo nada menos que 82 sinfonias concertantes, além de 9 sinfonias e 17 concertos tradicionais, além de 14 óperas.

Sua popularidade só declinou a partir de 1810, quando as sonoridades românticas começaram a surgir. Cambini foi, portanto, um italiano que se fixou em Paris, e lá construiu toda sua carreira. Eu quis começar com uma música sua porque ele foi um dos compositores mais emblemáticos da Sinfonia Concertante.

François Joseph Gossec

Mas vamos agora a um francês de verdade, François Joseph Gossec. Clicando na imagem abaixo, você ouvirá a sua Sinfonia Concertante em ré maior para flauta violino e orquestra.

Essa já é uma sinfonia concertante com três movimentos; mas são três que valem por dois, pois o primeiro é muito curtinho, não chega a um minuto e meio; e os três movimentos juntos duram menos que os dois da Sinfonia Concertante de Cambini que ouvimos.

Eu chamo também sua atenção, caro leitor, para o movimento lento da obra; exatamente como eu disse há pouco, não há aqui nenhum drama, nada de cores sombrias ou tristeza… ele é leve e delicado, passando uma deliciosa sensação de bem-estar.

Symphonie concertante du ballet de “Mirza” for Flute, Violin & Orchestra in D Major, Br. 90

Tipo Específico

Como você certamente constatou, as duas obras que ouvimos são semelhantes: música agradável, leve, com belas melodias, e sem emoções fortes. Típicas sinfonias concertantes do classicismo francês.

Cambini poderia ter chamado sua Sinfonia Concertante de “Concerto para Oboé, Fagote e Orquestra”? Sim, poderia, do mesmo modo como Gossec poderia ter chamado a sua de “Concerto para Flauta, Violino e Orquestra”. Mas não o fizeram porque os compositores franceses queriam mesmo um nome diferente para aquele tipo específico de concerto que estavam produzindo, e que aliás, fazia muito sucesso.

Durante o século XIX o classicismo de Viena foi grandemente promovido e divulgado, graças à obra dos gigantes Mozart e Haydn. Com muita justiça, faço questão de dizer. Contudo, por causa disso, acabamos nos esquecendo dos outros sotaques do estilo clássico. Paris sempre foi um fantástico centro musical, e é uma pena não conhecermos o que se fez por lá durante esse período.

A Sinfonia Concertante francesa se tornou tão popular que acabou sendo exportada; diversos compositores estabelecidos em outros centros musicais produziram obras do gênero.

Jean-Baptiste Davaux

Davaux era de uma pequena cidade do interior da França, e mudou-se para Paris com 25 anos de idade. Lá ficou até o final de sua vida e tornou-se o maior rival do italiano Cambini.

Documentos da época registram uma enorme quantidade de execuções de suas sinfonias concertantes – isso numa época em que o público, diferentemente de hoje, exigia constante renovação de repertório.

No link abaixo temos uma sinfonia concertante de Davaux que oferece o mesmo tipo de música agradável típica do gênero; mas em se tratando de suas dimensões, é uma exceção: ela dura mais de 20 minutos.

Além disso, há outra curiosidade. Reparem em seu título completo: “Sinfonia Concertante para dois violinos e orquestra, entremeada de canções patrióticas”

Ouça e divirta-se!

Jean-Baptiste Davaux: Symphonie concertante in G melée d’airs patriotiques (1794)

Esse é um exemplo de música que estava em consonância com a Revolução Francesa; muitos compositores fizeram obras do gênero, por serem verdadeiros entusiastas da Revolução…. ou por uma simples questão de sobrevivência…

De qualquer forma, uma obra francesa até a raiz, como foi o próprio gênero chamado de Sinfonia Concertante.

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Evolução Instrumental

Jan Brueghel I & Peter Paul Rubens – Hearing 

Hoje vamos falar um pouco sobre a evolução instrumental na música ocidental. Não é um assunto simples. Antes de se definirem instrumentos com os quais estamos habituados – como violinos, oboés, flautas transversais, trombones – centenas de outros nasceram, se desenvolveram e foram abandonados.

É assunto para um curso universitário. Ao mesmo tempo que é complexo, é fascinante. Vamos então hoje, saber um pouco a respeito.

Sabemos que na evolução da música europeia, a música vocal foi aquela que se desenvolveu primeiro. Havia instrumentos, é claro, mas a maior parte deles era bastante limitada, assim como era também limitada a técnica dos instrumentistas.

Com isso eu quero dizer que eles produziam poucas notas, e apresentavam muitas limitações em relação à intensidade sonora, afinação, timbres, etc.

Assim, esses instrumentos serviam principalmente para acompanhar cantos e danças populares. Aos poucos foram evoluindo, até que passaram a ser usados para acompanhar obras vocais mais sérias.

À medida que evoluíam, passaram a ser utilizados autonomamente, em danças de corte, e finalmente chegaram a ser usados na execução de obras totalmente instrumentais para serem ouvidas, e não dançadas.

Polorum Regina

Vamos acompanhar essa evolução instrumental, e começamos com uma antiga canção popular espanhola, uma melodia bonita porém simples, que é repetida várias vezes. Notem como nela os instrumentos têm um papel muito discreto, apenas de apoio. Temos um instrumento de sopro e um de corda que fazem uma única nota longa, um outro que toca a melodia, para auxiliar canto; e fora isso, temos alguma percussão pontuando aqui e ali.

Polorum Regina

Duzentos anos mais tarde, no século XVI, muitos instrumentos já haviam evoluído consideravelmente.

Passaram então a ter um papel bem mais importante, acompanhando obras vocais mais sofisticadas – às vezes quase que roubando a cena e ofuscando as vozes.

Wer daz Elend bauen wil

Vamos ouvir um exemplo, Wer daz Elend bauen wil – “Onde a pobreza construirá” – uma antiga canção do século XVI, entoada pelos peregrinos de Santiago de Compostela, de autoria do compositor Jobst vom Brandt.

Wer daz elend bauen wil (I)

Aqui temos um uso bem mais sofisticado dos instrumentos. Como eu disse agora há pouco, nesse exemplo eles quase roubam a cena, atraindo para si muito do interesse do ouvinte.

Havia, portanto, uma evolução instrumental paralela à música vocal. E essa evolução se deveu muito à dança. Se a música vocal evoluiu no ambiente religioso, foi no ambiente das cortes, graças a dança, que a música instrumental pode se desenvolver.

Naquela época a educação dos jovens de famílias poderosas não tinha muito a ver com os livros. Poucos sabiam ler ou escrever. Num mundo onde a ameaça de guerra era constante, o jovem aprendia a cavalgar, a esgrimar, a fazer suas próprias armas; mas também se preparava para os tempos de paz, aprendendo a cantar, tocar um instrumento e dançar.

Nesse mundo em que não havia televisão, internet, e mesmo um livro era algo raro, as festas e os bailes eram duas das poucas atividades de lazer possíveis. E aliás, nem eram puro lazer: nos bailes os nobres faziam alianças, e isso incluía até mesmo arranjar casamentos para seus herdeiros. A importância da dança era então muito maior do que imaginamos.

Orchesographie

Orchesographie

Tudo isso está registrado num documento histórico essencial para entendermos a evolução instrumental da música europeia. É um livro chamado Orchesographie, de 1589, escrito por um padre francês chamado Jean Tabourot. O livro contém alguns muitos trechos de partituras musicais da época, mas sobretudo é um tratado de dança. Por meio desse livro, os jovens cortesãos aprenderam a dançar.

Peter Warlock, um compositor inglês que viveu entre 1894 e 1930, fez uma suíte para cordas baseada em algumas danças do livro de Tabourot.

[NYCP] Warlock – Capriol Suite

Warlock, porém, escreveu-as para uma orquestra de cordas moderna. Ouvimos, portanto, uma sonoridade muito diferente da que se ouvia séculos atrás.

Ballet Des Coqs

Como será então que soavam essas danças quando tocadas à época?

Para termos uma ideia, devemos recorrer a um dos grupos que pesquisam seriamente os instrumentos de cada século. É isso que faremos em seguida. Vamos constatar a diferença ouvindo o conjunto sueco Westra Aros Pijpare.

Ballet – Michael Praetorius – Westra Aros Pijpare

Essa foi a peça Ballet Des Coqs, ou balé dos galos, executada pelo conjunto sueco Westra Aros Pijpare, com instrumentos típicos do século XVI: além dos violinos e violoncelos de época – bem diferentes dos de hoje – eles tocam o violone, que é uma viola da gamba grave, a viola da gamba tenor, não tão grave, o alaúde, a teorba , que é um alaúde grave, uma pequena harpa, muito menor que a moderna, um cornetto, flautas doces e transversais, crumhorns – que são instrumentos de sopro ancestrais do fagote – sacabuchas – ancestrais dos trombones – e um grande número de instrumentos de percussão.

Uma coisa muito interessante é que naquela época, ao contrário de hoje, o compositor escrevia apenas as notas musicais, sem dizer quais instrumentos deveriam tocá-las. Cabia aos próprios músicos decidir quais instrumentos utilizar e quando.

A produção de música para as festas e bailes em castelos e palácios era, portanto, muito grande naquele tempo. Em muitas cortes havia compositores residentes que se dedicavam a escrever essas danças, e muitas dessas partituras circulavam pela Europa.

Haveria de chegar um momento em que alguém faria um trabalho decisivo para o desenvolvimento da música instrumental da época; alguém que faria um registro global, um grande volume com todas essas partituras. Esse alguém foi um músico chamado Michael Praetorius.

Terpsichore

Praetorius, além de compositor, foi um prolífico teórico, que escreveu vários volumes abordando diferentes aspectos da música de seu tempo; comentários sobre a música religiosa, um extenso tratado sobre os instrumentos musicais, com muitas ilustrações, e uma coletânea de 312 danças francesas em voga. Esse livro ganhou o nome de Terpsichore, palavra que vem do grego e significa divertir-se com as danças.

O Terpsichore é uma das maiores fontes de estudo para compreendermos a música de dança daquele tempo. Foi tocando esse tipo de música que os instrumentos musicais foram se desenvolvendo, bem como sua técnica.

Quando ouvimos uma obra para orquestra de J. S. Bach, como uma de suas suítes ou um de seus magníficos concertos de Brandemburgo, podemos pensar: mas de onde veio essa música, essa sonoridade orquestral; quais foram as bases de Bach?

Pois uma boa parte dessa base ficou registrada por Praetorius em seu Terpsichore. Além de documento histórico, as partituras contidas nesta obra vão muito além da importância histórica e dão até hoje prazer aos ouvintes.

Praetorius – Ballet du Roy

Como eu disse há pouco, essas danças medievais e renascentistas foram a base da evolução instrumental na música erudita europeia. Graças a elas obras primas puramente instrumentais puderam ser escritas nos séculos seguintes.

Concerto de Brandemburgo nº 1

Um maravilhoso exemplo é o concerto de Brandemburgo nº 1, de Johann Sebastian Bach. Dos seis concertos dessa coleção, este nº 1 é o que tem a mais rica instrumentação, o que nos remete imediatamente a essas antigas danças que eram tocadas com tanta riqueza de timbres.

J.S. Bach: Brandenburg Concerto No. 1 in F Major, BWV. 1046 – I. Allegro

Das peças orquestrais de todo o período barroco, é uma das que apresenta uma maior riqueza de timbres, variedade temática, alterando trechos líricos e de dança, valendo-se ainda do mais refinado tratamento harmônico. Uma das mais sofisticadas obras orquestrais de seu tempo.

Neste texto eu procurei mostrar a vocês que a excelência da música instrumental ocidental veio de uma música muito mais simples, mas que até hoje não perdeu seu encanto: a música de dança da renascença e alta idade média.

Na evolução da música chamada de erudita, mesmo os maiores gênios fizeram música que veio de outra música. Nada surgiu por acaso.

Compreender essa linha evolutiva, e a importância da tradição na música de concerto é algo verdadeiramente encantador.

Espero que tenha gostado deste post sobre a evolução instrumental!

E aqui vai uma dica de leitura para que conheça mais sobre os instrumentos musicais!

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Saudações Musicais!

Rivalidades Musicais

Será que você é uma daquelas pessoas que imagina que os músicos são seres abençoados, e que entre eles reina sempre a mais perfeita harmonia? Se é, lamento dizer que isso tudo é uma grande ilusão. Sempre houve muitas rivalidades musicais, algumas lamentáveis, e outras nem tanto, pois resultaram em grandes avanços estéticos. Vamos falar um pouco sobre isso hoje.

Prima Pratica e Seconda Pratica

Uma das rivalidades musicais que ficou para a História aconteceu entre dois músicos italianos que viveram na virada do século XVI para XVII. Um deles se chamava Giovanni Artusi e o outro Claudio Monteverdi.

Vou me restringir ao cerne da questão. Entre os anos de 1600 e 1603, Artusi atacou veementemente a música de Monteverdi, que segundo ele era rústica e desobedecia às consagradas regras de composição.

Monteverdi respondeu brilhantemente em 1605, propondo que havia uma divisão na criação musical: a “Prima Pratica” e a “Seconda Pratica”.

Prima Prática era a música defendida por Artusi, o magnífico estilo polifônico do século XVI, que teve como um dos maiores expoentes Giovanni Perluigi da Palestrina.

Madrigals, Book 1 (Il primo libro di madrigali) : Donna, vostra mercede

Temos aqui um entrelaçamento perfeito de quatro vozes. Nesse tipo de música o uso de instrumentos era muitas vezes opcional, fornecendo apenas um discreto apoio.

Vamos a outro exemplo. Esta é uma peça puramente vocal, com cinco vozes entrelaçadas, sem qualquer instrumento musical.

Hodie Christus natus est – Palestrina, John Rutter, The Cambridge Singers

Isto é, portanto, aquilo que Monteverdi chamou de “Prima Pratica” – ou Stile Antico.

A “Seconda Pratica” – ou Stile Moderno, era algo muito diferente. Em vez de um entrelaçamento perpétuo de vozes, havia apenas uma voz. Como consequência, o texto sobre o qual a música era feita podia ser, finalmente, entendido com perfeição.

E quanto aos instrumentos, continuavam servindo de apoio, mas dessa vez, um apoio imprescindível. O resultado? Algo completamente diferente. Ouça!

Selva morale e spirituale: Jubilet tota civitas, SV 286

Recitativo e Aria

Caro leitor, essa Seconda Pratica, que como eu disse foi chamada também de Stile Moderno, pode parecer algo normal para nós, nos dias de hoje; mas foi naquela época o início de uma tremenda revolução musical. Não só musical, mas artística, pois ensejou o nascimento de um gênero que englobaria diversas artes: a ópera.

A voz única, cantando um texto que se tornava inteligível, unida ao desejo de se reviver o teatro grego, fez com que a música barroca se associasse à teatralidade e ao individualismo – características marcantes do povo italiano. Assim, esse novo gênero se tornou um sucesso irresistível por toda a Itália e igualmente fora dela.

Os compositores italianos de ópera logo definiram um padrão muito simples e eficaz: a dobradinha recitativo-aria. No recitativo, a fala se sobressai à melodia; na aria, ocorre o contrário. Assim, no recitativo a trama se desenrola, como no teatro, enquanto na aria as qualidades musicais se sobrepõem ao texto.

Vamos ouvir um exemplo de recitativo e aria bem curtos e simples, escritos por volta de 1670 pelo compositor Alessandro Stradella.

Primeiro o recitativo…

Lasciai di Cipro il soglio: Recitative: Lasciai di Cipro il siglio

E agora, a aria…

Lasciai di Cipro il soglio, Aria: Resto Seiano – Che le disgrazie sue

Óperas

As óperas italianas desta época eram, portanto, construídas basicamente por essa dobradinha. O novo gênero foi ganhando toda a Europa até que uma grande rivalidade surgiu. A França, a orgulhosa e poderosa França do Rei Luis XIV, o Rei Sol, não recebeu bem a novidade italiana! Mais uma contenda para a lista de rivalidades musicais da música do século XVII! Assim, ela acabou por criar a sua própria ópera, em tudo diferente daquela.

A ópera francesa nasceu de um gênero mais antigo chamado Ballet de Cour – os grandes e bem organizados balés da corte de Luís XIV de modo que a dança viria a ter um papel importantíssimo no gênero.

Mas o mais importante é que não havia nela a clara distinção entre recitativo e aria. A maneira como a música se conduzia e se relacionava com o texto era completamente diferente.

Para entender, nada melhor que fazer uma comparação, caro leitor. Compare os dois trechos que ouvimos acima, recitativo e aria do italiano Stradella, com os trechos a seguir da ópera Armide, de Jean-Baptiste Lully.

Ouça com atenção e você constatará a profunda diferença de estilos entre eles.

Armide, LWV 71, Act 2: “Invincible héros, c’est par votre courage” (Artémidore, Renaud)

Armide, LWV 71, Act 2: “Arrêtons-nous ici, c’est dans ce lieu fatal” (Hidraot, Armide)

Como você pode perceber, um longo trecho em que muita variedade, mas sem a divisão clara entre recitativo e aria típicos da ópera italiana.

Abertura Italiana

As aberturas das óperas italianas e francesas são outro caso a se observar no mundo das rivalidades musicais. São opostas em tudo: a abertura italiana é dividida em três partes, a 1ª rápida, a 2ª lenta e a 3ª novamente rápida. A francesa é o inverso: lento, rápido, lento.

Vamos começar ouvindo um exemplo de abertura italiana, de Alessandro Scarlatti, que foi um dos mais importantes compositores de ópera italiana do século XVII.

Venere, e Amore: I. Sinfonia

E em seguida, uma abertura de Antonio Vivaldi, da ópera Griselda. Observem a mesma forma – rápido-lento-rápido.

Griselda, RV 718: Sinfonia

Como eu disse no início, a ópera italiana espalhou-se por diversos países europeus, e uma prova disso é a obra que ouviremos em seguida: a abertura da ópera La Spinalba – vejam, um título italiano- mas escrita por Francisco António de Almeida – um compositor barroco português. A execução é do conjunto Os Músicos do Tejo.

Sinfonia da ópera “La Spinalba” de Francisco António de Almeida – “Os Músicos do Tejo

Abertura Francesa

E agora, depois de ouvir três aberturas em estilo italiano, eu tenho certeza de que você está com sua forma e espírito na memória. É hora de compará-los com os de uma abertura francesa, de Jean Baptiste Lully.

Armide, LWV 71, Prologue: Overture

Como eu disse, a forma básica é o inverso da abertura italiana – lento-rápido-lento. Além disso, o trecho lento é sempre em ritmo de caráter processional – o que os músicos chamam de ritmo pontuado – e a sessão lenta é sempre em escrita polifônica ou contrapontística – as melodias entrelaçadas.

A abertura francesa fez um enorme sucesso em outros países, e muitos compositores não franceses a adotaram fielmente. Foi o caso de Händel, que era alemão radicado na Inglaterra. Todas as óperas e oratórios de Händel que eu conheço têm abertura em estilo francês.

Espero que tenha gostado deste post sobre as rivalidades musicais da música barroca!

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Saudações Musicais!

Sonata Bitemática

The Lute Player – detalhe (Caravaggio)

Hoje vamos conhecer uma das mais complexas estruturas da música erudita europeia: a sonata bitemática. E como sempre, vou tentar explicá-la a vocês com um mínimo de termos técnicos, e de uma maneira que todo mundo possa entender; principalmente quem nunca estudou música.

Deixemos de lado a palavra sonata e nos concentremos da palavra bitemática. É fácil deduzir: uma sonata bitemática é aquela que tem dois temas. Muita gente pode pensar: mas e daí? O que isso tem de excepcional?

É, pode parecer simples, mas não é. Durante muito tempo foram criadas peças musicais com dois temas, ou até com mais de dois; mas não do jeito que veremos hoje.

Como eu costumo dizer, para conhecermos bem uma coisa, ajuda muito conhecer o contrário. Então, antes de abordar a tal sonata bitemática, vamos passear brevemente por outras formas e gêneros musicais bem diferentes.

Música Vocal

Na música vocal, por exemplo, os compositores procuraram sempre reforçar o texto que seria cantado. Esta era a preocupação fundamental.

Vejamos alguns exemplos de música vocal. O primeiro é o Stabat Mater, um texto religioso em latim que descreve o sofrimento de Maria ao pé da cruz em que Cristo estava crucificado. A música ilustra perfeitamente o seu sofrimento.

Stabat Mater – Dolorosa – G.B Pergolesi

Agora um exemplo muito diferente do anterior. Na ópera Dido e Eneas, de Henry Purcell, há um momento em que as bruxas se encontram e traçam planos diabólicos. A música não poderia ser mais adequada.

Dido and Aeneas, Z. 626, Act II: Prelude for the Witches. “Wayward Sisters, You That Fright”

Esses dois exemplos, um de música sacra e outro de ópera, mostram como na música vocal a principal preocupação do compositor é criar música que retrate fielmente o texto em questão.

Música Instrumental

Mas quando se trata de música puramente instrumental, a tarefa do compositor muda de figura, pois não há mais texto para ser cantado. Ou melhor, pode haver um subtexto, uma história que inspire o compositor.

É o caso da célebre primavera de Vivaldi. No 1º movimento, Vivaldi usou 4 temas: a melodia principal, conhecidíssima, que representa a alegria pela chegada da primavera; um segundo tema que descreve explicitamente os cantos dos pássaros; um terceiro tema que simboliza o murmurar de um riacho – que estava congelado e agora corre livremente; e finalmente um quarto tema, que descreve uma tempestade.

Vivaldi – Spring 1st Movement – The Four Seasons

Trata-se de um exemplo de música puramente instrumental, em que vários temas são organizados, um após o outro. Essa é uma maneira de compor música.

Apenas um Tema

Mas existe uma outra, em que o compositor, em vez de dispor de vários temas, prefere impor-se uma limitação: ele usa apenas um tema, e procura variar ou desenvolver esse tema de várias maneiras. Partindo dessa limitação, ele precisa usar com mais empenho sua criatividade – e esse é um grande desafio para o compositor.

Vamos ouvir um exemplo: um dos movimentos, a Polonaise, da Suíte Orquestral nº 2 de Johann Sebastian Bach. Se você prestar atenção, verá que este tema será desenvolvido e variado, mas nenhum outro tema surgirá nos 3 minutos e meio que essa peça dura. Vamos lá!

J.S. Bach: Orchestral Suite No. 2 in B Minor, BWV 1067 – V. Polonaise

Temos então na música instrumental basicamente essas duas possibilidades de construção: uma baseada mais na criação pura, em que vários temas são criados e organizados em sequência; outra baseada mais na manipulação dos temas, ou seja, em que um tema apenas é CRIADO, mas ele é desenvolvido e variado.

Dois Temas

Então houve um momento em que surgiu a ideia de se usar dois temas em vez de um. Afinal, no processo de desenvolvimento e variação, esses temas poderiam interagir, resultando em possibilidades muito mais ricas de construção musical. Essa ideia foi um verdadeiro boom na composição musical.

A obra calcada no desenvolvimento e variação de dois temas que interagem passou a ser chamada de forma-sonata bitemática, e foi uma das mais importantes características do estilo clássico, que sucedeu o barroco.

Normalmente a forma-sonata bitemática se organiza assim: Ouve-se o 1º tema, e depois o 2º tema; esse trecho é a exposição dos temas.

Em seguida temos o desenvolvimento desses temas. Aqui, nenhum tema ou melodia nova surgem. Tudo é feito baseado apenas nos temas ouvidos na exposição. Nenhuma nova ideia musical deve ser introduzida aqui. Essa é uma regra de ouro da forma sonata bitemática.

Após o desenvolvimento ouvimos novamente o 1º e o 2º temas. É a reexposição, que finaliza a peça.

Sonata KV 545

Mozart – Piano Sonata No. 16 in C Major, K.545 (1st Mvt)

Agora tomemos um minuto para elucidar um pouco a terminologia. Essa obra de Mozart, a sonata KV 545, tem três movimentos; e apenas o 1º é construído sobre dois temas. O 2º e o 3º movimentos são monotemáticos. O 2º tem o caráter de canção, e o 3º tem o caráter de dança. O 1º não: ele não tem nem caráter de dança, nem de canção; ele está mais para um discurso, uma narrativa, e com a diferença de ser bitemático.

Durante todo o período conhecido como classicismo e até durante o romantismo, quase todos os 1ºs movimentos de sonatas para piano, para violino e piano, violoncelo e piano, quartetos, trios, quintetos etc, eram escritos em forma-sonatas bitemática. E o mesmo acontecia com os 1ºs movimentos das sinfonias.

Quinta Sinfonia

Quinta Sinfonia – 1º movimento – Beethoven, com a Bachiana Filarmônica e o maestro João Carlos Martins

Esse tema – o pam-pam-pam-pam – todo mundo conhece. Se perguntarmos, qualquer um responderá: esse é o tema do 1º mov da 5ª de Beethoven. Só que o que quase ninguém se dá conta é que esse não é “o” tema, mas o primeiro tema do 1º movimento desta sinfonia.

Pois é, o 1º movimento da 5ª sinfonia de Beethoven também é tem forma sonata bitemática, e é um dos mais claros exemplos que podemos ter dessa forma. E evidentemente, em se tratando de Beethoven, temos uma forma sonata bitemática bastante estendida, ampliada. Mas por mais ampliada que seja, a regra de ouro nunca é violada: os desenvolvimentos são feitos apenas sobre os dois temas; eles são toda a matéria prima de que o compositor dispõe.

Ele propositadamente limita esta matéria prima para desafiar sua criatividade a produzir os mais elaborados desenvolvimentos.

Análise

Vamos analisar esse 1º movimento mais detalhadamente. Ele começa com a apresentação do 1º tema. Após apresentar o 1º tema, ele não vai logo para o 2º. Antes disso ele já faz um pequeno desenvolvimento deste 1º tema. Então Beethoven nos apresenta o 2º tema, muito curto e simples. Dica: ele começa aos 1’05” do vídeo acima.

Ele desenvolve este 2º tema rapidamente, para então voltar ao 1º tema e fazer o fechamento da 1ª parte da peça- lembram-se do nome? É a exposição! Agora sim, começa o desenvolvimento pra valer. E só são usados os elementos dos apresentados na exposição. Feito o desenvolvimento, vamos à reexposição.

E procurem prestar atenção: em um determinado momento, vocês vão ter a impressão de que a reexposição está terminando. Mas Beethoven nos engana: retoma o fôlego, desenvolve os temas mais um pouco, indo finalmente ao final da obra.

Clareza

Essa foi uma pequena análise do 1º movimento da 5ª sinfonia de Beethoven, um dos mais claros exemplos de forma sonata bitemática que existem. Essa clareza resulta da simplicidade dos temas, e principalmente do grande contraste entre eles. Quando mais simples e mais contrastantes, mais claro será também o desenvolvimento. E mais fácil será para nós ouvintes memorizarmos esses temas para depois acompanharmos o que acontece com eles no desenvolvimento.

Os Três maiores mestres da forma sonata bitemática foram Mozart, Haydn e Beethoven. Só não posso terminar sem antes dizer que conhecer forma musical pode ser muito interessante para quem gosta de se aprofundar nos mistérios da composição musical. Mas você NÃO precisa disso para se deliciar com boa música.

Espero que tenha gostado deste post.

E aqui vai uma dica de CD da obra Dido e Eneas que apresentei neste post!

É uma obra prima, uma ópera completa que dura apens 50 minutos.

Excelente para se iniciar no mundo da ópera!

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Saudações Musicais!

Polifonia e Música Polifônica.

Polifonia é uma palavra que poderia ser traduzida ao pé da letra por “muitos sons”.

Consequentemente, em oposição a polifonia, temos a palavra “monofonia”, que quer dizer um som.

Isso significa que uma música monofônica é formada por uma única melodia.

Polifonia, por sua vez, se refere a uma música formada por várias melodias tocadas simultaneamente.

O Canto Gregoriano

Parece simples, mas vale a pena nos aprofundarmos no universo da polifonia.

Os cantos gregorianos, melodias simples que durante séculos foram usadas nos cultos cristãos, são um típico exemplo de monofonia.

Neles não havia nada de polifonia.

Alma Redemptoris Mater. Canto Gregoriano. Execução dos Monges da Abadia de Ganagobie, França.

A peça acima é um exemplo típico de monodia ou monofonia, ou seja, uma música formada por uma melodia simples e isolada, sem qualquer acompanhamento.

Aqui não há polifonia.

Exemplo de música polifônica.

A peça que está no link abaixo é um exemplo típico de polifonia: música formada por várias melodias cantadas simultaneamente.

Filipe de Magalhães: Vidi Aquam. Conjumto Ars Nova, dirigido po Bo Halten.

Feita esta distinção, vamos agora saber como é que se faz uma música polifônica.

O desafio da polifonia: combinar sons simultâneos.

Voltemos ao século XVI. Num primeiro momento podemos mesmo pensar que a coisa era fácil: bastava criar algumas melodias e cantá-las todas ao mesmo tempo.

Isso não dá certo. Essas melodias podem ter notas que se chocam, gerando fortes dissonâncias.

É polifonia, porém esteticamente inaceitável pelos padrões do século XVI.

Ouça abaixo um exemplo muitíssimo interessante.

É uma peça do compositor barroco alemão Ignaz Franz von Biber, em que ele de propósito combina várias melodias que resultam em duras dissonâncias.

https://www.youtube.com/watch?v=v0ek8ihZOZQ
Biber: “A companhia dissoluta de todos os tipos de humor”, 2o. movimento da Suíte “Batalha”.

Como evitar as dissonâncias?

Prá que duas ou mais melodias combinem, resultando numa polifonia esteticamente aceitável, elas têm de ser compostas ao mesmo tempo, seguindo determinadas regras.

O compositor ia então examinando as combinações de notas simultâneas, uma a uma, para evitar essas dissonâncias mais fortes.

Vamos a um exemplo de Johann Sebastian Bach. Bach compôs uma série de peças polifônicas que ele chamou de Invenções.

São peças bem simples, criadas para servirem de estudo de cravo a seus filhos. São constituídas por duas melodias, uma para ser tocada pela mão direita e outra pela mão esquerda.

Um exercício muito bom para compreendermos o que é polifonia, é ouvir essas Invenções de Bach tentando separar as duas melodias na nossa cabeça.

J. S. Bach: Invenção No. 1 in C Major, BWV 772. Execução de János Sebestyén.

Imitação: um importante recurso da polifonia.

Nesta pequena peça podemos observar um importante conceito da múisca polifônica: é a “imitação”

A música começa com a mão direita tocando sozinha, e a mão esquerda logo em seguida toca a mesma melodia tocada pela direita.

A mão esquerda “imita” a direita. E esse é um procedimento muito comum na polifonia.

A imitação pode ser um elemento ocasional numa música polifônica, mas pode também acontecer num longo trecho ou até numa peça toda.

Uma melodia infantil francesa muito conhecida, Frére Jacques, é totalmente imitativa.

Cânone

Esse tipo de melodia polifônica, em que uma melodia imita a outra ipsis literis, chama-se canon, ou cânone em português.

Um exemplo de verdadeira obra prima do repertório clássico em que o “cânone” é usado , é o 4º movimento da sonata para violino e piano de César Franck. Trata-se de polifonia elaborada com grande maestria!

O violino e o piano estão em imitação perfeita. E essa imitação perfeita voltará no final da peça.

Quarto e último movemento da Sonata para violino e piano de César Franck’s violin.
Execução de Johannes Fleischmann ao violino e Philippe Raskin ao piano.

O auge da polifonia.

Embora eu tenha mostrado esses exemplos polifônicos de Cesar Franck, compositor do século XIX , e de Bach, que viveu no século XVIII, foi no século XVI que aconteceu o auge do estilo polifônico, e é para os compositores dessa época que devemos dirigir nossa atenção.

Uma peça musical polifônica é como uma corda. Se olhamos uma corda de longe, a vemos como um objeto sólido e denso; mas se a olhamos de perto, podemos ver que é formada por um perfeito entrelaçar de fios mais finos.

Imagem de uma corda simbolizando a polifonia.
Foto de Steve Norris por Pixabay.

Monges.

A polifonia do século XVI foi o resultado das pesquisas sonoras feitas durante séculos por monges amantes da música que viviam em mosteiros e tinham bastante tempo para seus estudos.

Monges medievais cantando. Os precursores da polifonia.
Monges cantando. Pintura medieval anônima.

Antes dessas pesquisas, toda a música produzida pelos seres humanos de todas as partes do planeta eram monofônicas, ou seja, feitas a partir de melodias simples.

Superpor melodias significa tocar duas ou mais notas ao mesmo tempo. E esse era o grande desafio: saber prever como resultaria a combinacão de duas ou mais notas.

Uma simples analogia.

Fica mais fácil entender se fizermos uma analogia com as artes visuais.

Todos nós desenhamos e pintamos na infância e aprendemos um pouco sobre combinacão de cores. Azul e amarelo resulta em verde. Vermelho e amarelo resulta em laranja.

O prisma das cores como em analogia às combinações de sons.
Imagem de Daniel Roberts por Pixabay.

Mas e quanto aos sons? Imagine que você está sentado frente a um teclado de um piano. Escolha duas teclas. Sem tocá-las, você será capaz de saber como será o resultado sonora dessa combinacão?

Quem não estudou música não é capaz de prever o resultado das combinacões de sons.

Por exemplo:

Um do e um mi tocados ao mesmo tempo resultam num som agradável, consonante.

Um do e um si tocados ao mesmo tempo resultam em um som duro, dissonante

Nós músicos sabemos isso hoje, mas durante quase toda a história da humanidade, ninguém sabia.

A escrita musical dos monges.

Os monges faziam suas experiências polifônicas cantando. O único instrumento de que dispunham era a voz.

Além disso, ainda não havia a escrita musical como conhecemos hoje.

Partitura moderna.
Foto de Kate Cox, por Pixabay.

As notas eram representadas por linhas e pontos.

Partitura medieval. Letra e Música.

Daí a expressão ponto-contra-ponto, que equivale a nota-contra-nota.

Polifonia é portanto um estilo em que o tecido musical é feito a partir de várias melodias tocadas simultaneamente.

E a técnica usada para se escrever música polifônica é o contraponto.7

Espero que esses conceitos tenham ficado claros!

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Saudações Musicais do Maestro J. M. Galindo.

Música na casa de Bach

Lazer noturno no século XVIII

Caro leitor: antes de falar sobre a música na casa de Bach, proponho um exercício de imaginação..

Imagine que você vive na Europa, digamos no interior da França ou da Alemanha, na 1ª metade do século XVIII.

Não existe luz elétrica, nem TV, rádio ou internet.

Então pergunto: quais seriam suas opções de lazer noturno?

Pense bem: não seriam muitas: sair para tomar uma cerveja, se vc fosse homem, ou ficar em casa, lendo um livro ou…. fazendo música em casa, com a famíla ou amigos.

Juntar a amigos e familiares para tocar ou cantar juntos era naquela época o equivalente de juntar a famíla na frente da TV.

Esse cultivo caseiro amadorístico da música foi corriqueiro na Europa por muito tempo.

A disseminação desse hábito resultou com o passar do tempo no surgimento de grandes conjuntos musicais que sobrevivem até hoje.

Orquestra do Gewandhaus de Leipzig

Um do melhores exemplos é a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig.

Sua história está de certa forma conectada com a música na casa de Bach.

Esta orquestra fabulosa, que tem sido uma das maiores do mundo, é um dos maiores exemplos da importância da atividade musical amadora.

No site oficial da Orquestra na Internet podemos ler o seguinte:

“A Orquestra do Gewandhaus pode olhar para trás com orgulho sobre seus 250 anos de história.”

Dezesseis comerciantes da cidade fundaram e financiaram uma sociedade de concertos que desde então fez história e se tornou uma das mais renomadas orquestras do mundo.”

Música doméstica

No início tratava-se de uma atividade doméstica, que começou em 1743.

Os encontros eram feitos em residências.

A música feita na casa de Bach fazia parte desses encontros.

Alguns anos depois os encontros musicais passaram a ser feitos em uma taverna.

Finalmente, em 1781, as autoridades municipais ofereceram à orquestra o Gewandhaus, ou seja, o prédio usado pelos comerciantes de tecidos.

Gewand: tecido

Haus: casa

E um dos maiores compositores de todos os tempos chegou a participar de alguns desses encontros musicais em Leipzig: Johann Sebastian Bach

Bach estava lá

Eu poderia continuar contando a história da Orquestra de Leipzig, mas o objetivo deste texto é falar da boa música que se fazia na casa de Bach.

Isso está bem documentado em dois cadernos escritos pelo mestre, um em 1722 e outro em 1725.

São conhecidos hoje em dia pelo título de “O livro de Anna Magdalena Bach”.

Capa do 1o. volume do Livro de Anna Magdalena Bach

O livro de Anna Magdalena Bach

Pelo estudo desses dois volumes, fica bastante claro que Anna Magdalena participava ativamente da música feita em sua casa.

Esses cadernos contém as 1ªs versões de importantes obras de Bach: 5 de suas 6 Suítes Francesas estão lá copiadas, em primeiras versões.

As partitas para cravo também são obras de grande importância na produção do Mestre, e duas delas estão registradas em seus cadernos.

As suítes Francesas e as Partitas são peças de maior envergadura e exigem uma técnica bastante evoluída de quem as interpreta.

Provavelmente estavam lá para serem tocadas pelo prório Bach.

Lições para os filhos

Além dessas peças difíceis, encontramos nos cadernos algumas peças avulsas, como prelúdios e minuetos.

Ao que tudo indica, essas pequenas peças serviam como lições de cravo para sua esposa Anna Magdalena, bem como a alguns de seus filhos.

Esses dois cadernos não contém exclusivamente peças de Johann Sebastian, mas também de outros autores, inclusive de um de seus filhos, Carl Phillipp Emmanuel Bach, que à época tinha 11 anos de idade.

Bach, Karl Philipp Emanuel - PICRYL Public Domain Search
Carl Philip Emmanuel Bach

O filho mais velho de Bach, Wilhelm Friedemann Bach também tinha aulas com o pai.

Wilhelm Friedmann Bach

Para ele Johann Sebastian preparou um outro caderno, com várias peças para estudo.

Acredita-se que trechos do 1º volume do cravo bem temperado tenha sido escrito para Wilhelm.

Canções Sacras

Mas a música feita na casa dos Bach não se restringia só ao cravo.

Ali, com certeza, todos cantavam.

O hábito de cantar no cultos luteranos foi uma das melhores bases musicais que ajudou a formar a formidável cultura musical alemã.

Além disso, Bach era um exímio executante de violino e viola.

Um exemplo que junta tudo isso é a canção sacra intitulada “Dir Dir, Jehova will ich singen”, índice BWV 299.

J.S. Bach – Dir, dir Jehova, will ich singen BWV 299 – Daniels | Netherlands Bach Society

Outro exemplo de música na casa de Bach é o Recitativo e Aria para soprano “Ich Habe Genug- Schlummert ein, ihr matten Augen”.

Esta peça foi completamente adaptada por Anna Magdalena Bach para sua própra extensão vocal.

Ela mudou a tonalidade e eliminou várias repetições.

Sim, a esposa de Bach também conhecia música muito bem!

Canções Seculares

Canções não religiosas também estão na coletânea de Bach, como “So Oft ich meine Tobacks-Pfeife”, índice BWV 515a.

O autor dessa peça permanece anônimo.

Canções de Amor

Canções de amor também estavam presentes nos cadernos de Anna Magdalena Bach. “Bist du bei mir” – Fique comigo – é um exemplo.

Sua autoria é atribuída ao compositor Gottfried Stölzel.

Os Instrumentos da casa de Bach

Um inventário feito na casa de Bach logo após sua morte detalhou os instrumentos musicais lá encontrados.

Além dos que já foram citados até aqui, constava um instrumento exótico, contruído pelo próprio Johann Sebastian: um cravo-alaúde.

Este instrumento está desaparecido.

Mas para aguçarmos nossa imaginação no sentido de como teriam sido as sonoridades ouvidas na casa de Bach, ouça um de seus prelúdios para cravo, tocado ao alaúde.

Eram essas algumas das peças que se ouviam na casa de Bach há mais de 250 anos.

Naquela era pré-industrial a música era um bem compartilhado por muita gente, em casa, com família e amigos.

Dessa intensa atividade surgiram grandes orquestras sinfônicas que brilham até hoje.

Eu costumo dizer que falta isso em nosso pais.

Mais música feita por amadores.

Mais gente estudando música, não com o objetivo da profissionalização, mas para enriquecimento pessoal.

E dessa base surgirão as grandes orquestras.

Contudo, a prática musical caseira foi substituída pela TV, pela internet, pelo celular e por aí afora..

Melhor parar por aqui, antes que eu seja chamado de antiquado e dinossáurico….

Saudações Musicais a todos.