A Música Popular na Música Erudita

Tarantella – Alexandre Thomas Francia

Na postagem de hoje, volto a um tema que me é muito caro: a presença da música popular na música erudita. Já tivemos outros textos com o mesmo assunto, mas os exemplos musicais são tantos, que eu me sinto tentado a abordá-lo novamente.

Além disso, para nós, brasileiros, que temos uma música popular tão exuberante, de tanta personalidade e tão respeitada internacionalmente, é muito interessante saber que séculos atrás, os compositores que hoje chamados de eruditos, eram muito ligados à música popular de seus países e de outros.

Quando se fala na presença de melodias e ritmos populares na música clássica, pensa-se logo nas assim chamadas “Escolas Nacionalistas” da segunda metade do século XIX. Nessa época, compositores de poucos países figuravam entre os maiores da Europa: Itália, França, Alemanha e Áustria.

Então, outros países começaram a contribuir para o 1º time de compositores. Exemplo: o norueguês Edvard Grieg, o finlandês Jean Sibelius, o tcheco Smetana e muitos mais.

Mas essa história é bem conhecida. Os apreciadores de música de concerto sabem que esses compositores usaram ritmos e melodias da música popular de seus respectivos países.

Jean-Philippe Rameau

Jean-Philippe Rameau (1683–1764)

O que pouca gente sabe é que os compositores anteriores a esses, ou seja, aqueles que viveram no século XVIII e na primeira metade do século XIX já usavam muita música popular. Até mesmo os mais sérios e austeros, como Beethoven.

Daqui a pouco voltaremos a Beethoven. Vamos começar ainda mais distantes no tempo, com um compositor francês do século XVIII, entre 1683 e 1764: Jean-Philippe Rameau.

Rameau foi um dos maiores paradigmas do que hoje chamamos de músico erudito. O seu “Tratado de Harmonia”, escrito em 1722, foi um dos maiores acontecimentos da música europeia, e é estudado até hoje.

Mas esse grande erudito não abria mão de unir a música popular de seu tempo, com música intelectualizada, fruto de um pensamento musical sofisticado.

Tamburin

Vamos então a um exemplo, um trecho de Dardanus, uma de suas óperas mais importantes. Nele Rameau usa um ritmo popular chamado “tamburin” – Tamborim, em português, e usa, inclusive tambores marcando o ritmo. A peça começa com a orquestra tocando sozinha e em seguida une-se a ela um coral.

Um exemplo de ritmo popular francês usado em uma grande obra classificada como erudita.

Dardanus : Act 3 “Chantons tous”

Rameau se tornou um grande compositor de ópera já na maturidade. Antes disso, era organista, um grande e importante organista e cravista. Compôs muito para o cravo, e nessas obras também encontramos o ritmo do tamburin.

J. Haydn

Uma boa maneira de entender a presença da música popular nas obras assim chamadas de eruditas é fazendo comparações. Nas sinfonias clássicas, por exemplo, é possível encontrarmos algumas muito interessante.

Vemos uma delas na Sinfonia nº 82, de J. Haydn. O 3º movimento da sinfonia é uma dança tipicamente aristocrática. E o minueto dessa sinfonia 82 é particularmente solene e cheio de reverências aristocráticas.

Pois bem, terminando o minueto vem o 4º movimento, e esse é uma dança de indubitável sabor popular, folclórico.

O terceiro movimento, o minueto, uma típica dança aristocrática, e o 4º movimento, Finale, uma típica dança popular.

Mozart

Vejamos agora um exemplo de W. A. Mozart.

Mozart: Cosi fan tutte: La mia Dorabella capace non e

Como pode perceber, trata-se de um trecho de ópera. Mas por baixo dessa voz tipicamente operística, Mozart coloca um ritmo popular italiano: a Tarantella, afinal, a história dessa ópera, chamada Cosi fan tutte, acontece em Nápoles.

É o canto erudito, sofisticado, unido a um dos mais conhecidos ritmos populares de todos os tempos.

Tarantella

O caro leitor pode achar que a tarantella ficou demasiadamente em segundo plano. É verdade, e essa foi realmente a intenção do compositor, pois as vozes são os protagonistas aqui.

Sendo assim, vamos a uma peça puramente instrumental, em que o ritmo saltitante da tarantella está sob os holofotes! É o 4º movimento da 3ª Sinfonia de Franz Schubert, mais um exemplo do uso de um ritmo bem popular em uma obra considerada erudita.

Nos séculos XVIII e XIX, eram justamente nos últimos movimentos das sinfonias e concertos que os elementos musicais populares apareciam com mais evidência; isso fazia parte da estética musical da época.

Beethoven

É hora então de voltarmos a Beethoven, um dos mais austeros e sérios compositores. Nas suas sinfonias Beethoven também utilizou ritmos de dança bastante animados e de caráter nitidamente popular. Um bom exemplo é o 4º movimento e último movimento da 7ª Sinfonia, inspirado numa dança popular húngara chamada Verbunko que, aliás, existe até hoje!. É um ritmo verdadeiramente irresistível.

Beethoven, Sinfonia nº 7: 4º Movimento

Pois é caro leitor, Beethoven tem essa imagem de compositor extremamente sério e austero, claro, ele era mesmo um homem austero, um músico muito, muito sério. Mas isso não quer dizer que ele simplesmente ignorava a música popular da sua época.

Um delicioso exemplo que comprova isso que eu digo são os muitos arranjos que ele fez de canções populares. Eu acho essas pecinhas simplesmente encantadoras!!!

Pois foi uma melodia popular simples como essas, que Beethoven usou como matéria prima de uma de suas obras mais monumentais.

Estou falando de uma singela contradança, catalogada como WoO 14, no. 7.

Sinfonia n.º 3

E agora, a peça grandiosa que Beethoven fez a partir dela: o 4º e último movimento da 3ª Sinfonia, a Sinfonia Eroica. Note como Beethoven não mostra a melodia de imediato; de modo genial ele a vai construindo aos poucos, de modo que ela só surge depois de quase dois minutos…

Beethoven: Symphony No. 3, Eroica, 1st movement

Schubert

A cidade de Viena sempre foi um dos mais importantes centros musicais Europeus; sempre teve uma vida musical rica e diversificada, mantida pelo governo e por patrocinadores privados; por isso atraiu tantos compositores de grande talento que procuraram desenvolver suas carreiras, como foi o caso de Brahms, nascido em Hamburgo, de Beethoven, nascido em Bonn, de Mozart, nascido em Salzburg, de Haydn, nascido em Rohrau, uma pequena aldeia no interior da Áustria, do italiano Salieri e de muitos outros.

Por tudo isso, foi também uma das primeiras cidades onde nasceu uma forte música popular urbana. E um dos compositores austríacos que mais se deixou influenciar por essa música popular foi alguém que não veio de fora, mas que nasceu lá mesmo: Franz Schubert.

Não reconhecido enquanto vivo, mas hoje considerado um dos maiores gênios musicais de todos os tempos, Schubert deixou em várias de suas obras o sabor da música popular vienense. Dentre eles o belíssimo: o 3º movimento de sua Sonata Arpeggione.

Carl Maria von Weber

Na ópera alemã, a música popular também se fez presente. Uma das mais importantes obras do gênero é “O Franco Atirador”, de Carl Maria von Weber.

Nesta ópera Weber procurou um caminho para a criação de um estilo operístico tipicamente germânico, livre das influências da ópera italiana, dominante em toda a Europa.

E para isso recorreu, entre outras coisas, à música popular de seu país. Logo no início da obra, há um encontro de camponeses em festa, e a música que se ouve é tipicamente popular.

Mais adiante há uma cena em uma taberna, com muito vinho e dança. Novamente, o gênero musical é indubitavelmente popular.

No enredo da obra, a principal personagem feminina está noiva. Antes de seu casamento, ela é visitada pelas damas de honra, que cantam uma canção popular. E um dos trechos mais populares da obra é o coro dos caçadores….

Mas talvez, a essa altura, alguém esteja perguntando: se isso tudo é popular, o que será erudito?

A melhor resposta que podemos ter é a audição da abertura desta ópera. Ela contém os principais temas da obra, montados numa estrutura admirável, que nos leva às mais diferentes emoções. Esta verdadeira arquitetura, levada a cabo em função das emoções e da história, é fruto de grande erudição.

Carl Maria von Weber (1786-1826) – Abertura da opera “O Franco Atirador”

Espero que tenha gostado deste post.

Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!

Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

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3 comentários em “A Música Popular na Música Erudita”

  1. Maestro,
    Gostei muito desta sua aula, só tenho elogios ao seu trabalho.

    Fiquei um “pouco perdido” no caso da 3a. sinfonia de Beethoven,
    em que o senhor se refere ao quarto movimento, mas no vídeo vem o primeiro, que me parece ter a construção da melodia como foi dito, fui procurar em outros vídeos e no quarto também tem algo parecido mas não tão claro como no primeiro.
    Como sou apenas um aprendiz de apreciador de música, creio que tenho muito ainda a apreender.

    Obrigado,

  2. Excelente material. Seu grande conhecimento consegue juntar de forma concisa e clara exemplos sobre os mais diferenciados elementos do cenário musical. Sejam assuntos com ampla abrangência como o erudito X popular bem como temas mais pontuais e restritos.

    Gratidão por compartilhar seu conhecimento e nos incentivar a procurar novos ares ( ou sons).

    1. Olá Clóvis, muito obrigado por seu comentário e pelo elogio. Realmente, procurar novos ares e novos sons faz muito bem! 🙂 Um abraço.

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