Concerto nº 2 para Violino de Paganini

Paganini estudou composição com Ferdinando Paer, que foi um dos mais importantes compositores de ópera italianos da geração que antecedeu a Rossini. Desse estudo resultaram vários quartetos para violino, viola, violoncelo e violão, os primeiros escritos quando Paganini tinha pouco mais de vinte anos de idade.

Ouvindo esses quartetos, em quatro movimentos, percebe-se que Paganini já dominava muito bem as formas e o estilo definidos consolidados no Classicismo.

Nos concertos para violino, a história é outra, aqui o que ouvimos é música romântica. Os concertos para violino de Paganini são muito bem construídos, e se inserem numa tradição dos primeiros concertos para violino românticos, de compositores como Rofolphe Kreutzer e Giovanni Batista Viotti. Esses, contudo, estão esquecidos do público, e são lembrados apenas por violinistas. Os concertos de Paganini, não; são tocados com frequência até hoje.

Eles estão repletos das suas estripulias virtuosísticas, como o Ricochet, em que o arco ricocheteia repetidamente pelas cordas, trechos superagudos e cordas duplas, a célebre “risada de Paganini”, que nada mais é que uma escala deslizante do agudo para o grave, os harmônicos, os pizzicatos de mão esquerda e muito mais….

1º movimento

Violin Concerto No. 2 in B Minor, Op. 7, MS 48 (arr. M. Dellaborra for violin and orchestra)

2º movimento

Contudo, obras de grande envergadura como um concerto romântico não se sustentam apenas nas estripulias virtuosísticas. O que as mantém de pé são belas melodias, trechos vibrantes, ou seja, diversidade, que evita a monotonia.

Sendo assim, o 2º movimento é completamente diferente. Ele começa com uma introdução que não tem nada de clássica.

Há um enorme contraste entre o bucolismo pastor de trompas e flautas, e trechos de grande dramaticidade e potência sonora. Quando o violino solista entra, nos sentimos ouvindo uma aria de uma ópera romântica italiana.

Violin Concerto No. 2 in B Minor, Op. 7, MS 48 (arr. M. Dellaborra for violin and orchestra)

3º movimento

O 3º movimento é primorosamente construído, com Paganini esbanjando criatividade em belíssimas melodias e ritmos envolventes. Ele recebeu o apelido de La Campanella – O Sininho – porque Paganini usa um pequeno sino em sua orquestra, que resulta num efeito ao mesmo tempo bem-humorado e delicado.

Essa melodia tornou-se um enorme sucesso a ponto de outros compositores como Liszt e Strauss escreverem peças baseadas nela.

Violin Concerto No. 2 in B Minor, Op. 7, MS 48 (arr. M. Dellaborra for violin and orchestra)

“Sonata para Gran Viola e Orquestra”

Uma obra em que conferimos a competência de Paganini em construir obras de grande envergadura, bem como o seu estilo já bastante desligado do classicismo, e repleto de romantismo. Uma obra inovadora para seu tempo, escrita em 1826, quando Beethoven ainda estava vivo, e muitos compositores ainda estavam totalmente presos aos padrões do Classicismo.

Ainda faltavam 4 anos para o surgimento de um dos grandes marcos do romantismo: a Sinfonia Fantástica de Berlioz.

Em 1833 Paganini, após ouvir a “Fantástica”, encantado por ela, encomendou a Berlioz um concerto para viola. O resultado foi a sua 2ª Sinfonia, conhecida como Haroldo na Itália.

Paganini decepcionou-se com a obra, por não ser virtuosística. Rejeitou-a e decidiu ele mesmo escrever uma peça para viola e orquestra. O resultado foi a “Sonata para Gran Viola e Orquestra”, na verdade um pequeno concerto, com 3 movimentos interligados.

Sonata per la grand viola

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Saudações Musicais!

Rivalidades Musicais

Será que você é uma daquelas pessoas que imagina que os músicos são seres abençoados, e que entre eles reina sempre a mais perfeita harmonia? Se é, lamento dizer que isso tudo é uma grande ilusão. Sempre houve muitas rivalidades musicais, algumas lamentáveis, e outras nem tanto, pois resultaram em grandes avanços estéticos. Vamos falar um pouco sobre isso hoje.

Prima Pratica e Seconda Pratica

Uma das rivalidades musicais que ficou para a História aconteceu entre dois músicos italianos que viveram na virada do século XVI para XVII. Um deles se chamava Giovanni Artusi e o outro Claudio Monteverdi.

Vou me restringir ao cerne da questão. Entre os anos de 1600 e 1603, Artusi atacou veementemente a música de Monteverdi, que segundo ele era rústica e desobedecia às consagradas regras de composição.

Monteverdi respondeu brilhantemente em 1605, propondo que havia uma divisão na criação musical: a “Prima Pratica” e a “Seconda Pratica”.

Prima Prática era a música defendida por Artusi, o magnífico estilo polifônico do século XVI, que teve como um dos maiores expoentes Giovanni Perluigi da Palestrina.

Madrigals, Book 1 (Il primo libro di madrigali) : Donna, vostra mercede

Temos aqui um entrelaçamento perfeito de quatro vozes. Nesse tipo de música o uso de instrumentos era muitas vezes opcional, fornecendo apenas um discreto apoio.

Vamos a outro exemplo. Esta é uma peça puramente vocal, com cinco vozes entrelaçadas, sem qualquer instrumento musical.

Hodie Christus natus est – Palestrina, John Rutter, The Cambridge Singers

Isto é, portanto, aquilo que Monteverdi chamou de “Prima Pratica” – ou Stile Antico.

A “Seconda Pratica” – ou Stile Moderno, era algo muito diferente. Em vez de um entrelaçamento perpétuo de vozes, havia apenas uma voz. Como consequência, o texto sobre o qual a música era feita podia ser, finalmente, entendido com perfeição.

E quanto aos instrumentos, continuavam servindo de apoio, mas dessa vez, um apoio imprescindível. O resultado? Algo completamente diferente. Ouça!

Selva morale e spirituale: Jubilet tota civitas, SV 286

Recitativo e Aria

Caro leitor, essa Seconda Pratica, que como eu disse foi chamada também de Stile Moderno, pode parecer algo normal para nós, nos dias de hoje; mas foi naquela época o início de uma tremenda revolução musical. Não só musical, mas artística, pois ensejou o nascimento de um gênero que englobaria diversas artes: a ópera.

A voz única, cantando um texto que se tornava inteligível, unida ao desejo de se reviver o teatro grego, fez com que a música barroca se associasse à teatralidade e ao individualismo – características marcantes do povo italiano. Assim, esse novo gênero se tornou um sucesso irresistível por toda a Itália e igualmente fora dela.

Os compositores italianos de ópera logo definiram um padrão muito simples e eficaz: a dobradinha recitativo-aria. No recitativo, a fala se sobressai à melodia; na aria, ocorre o contrário. Assim, no recitativo a trama se desenrola, como no teatro, enquanto na aria as qualidades musicais se sobrepõem ao texto.

Vamos ouvir um exemplo de recitativo e aria bem curtos e simples, escritos por volta de 1670 pelo compositor Alessandro Stradella.

Primeiro o recitativo…

Lasciai di Cipro il soglio: Recitative: Lasciai di Cipro il siglio

E agora, a aria…

Lasciai di Cipro il soglio, Aria: Resto Seiano – Che le disgrazie sue

Óperas

As óperas italianas desta época eram, portanto, construídas basicamente por essa dobradinha. O novo gênero foi ganhando toda a Europa até que uma grande rivalidade surgiu. A França, a orgulhosa e poderosa França do Rei Luis XIV, o Rei Sol, não recebeu bem a novidade italiana! Mais uma contenda para a lista de rivalidades musicais da música do século XVII! Assim, ela acabou por criar a sua própria ópera, em tudo diferente daquela.

A ópera francesa nasceu de um gênero mais antigo chamado Ballet de Cour – os grandes e bem organizados balés da corte de Luís XIV de modo que a dança viria a ter um papel importantíssimo no gênero.

Mas o mais importante é que não havia nela a clara distinção entre recitativo e aria. A maneira como a música se conduzia e se relacionava com o texto era completamente diferente.

Para entender, nada melhor que fazer uma comparação, caro leitor. Compare os dois trechos que ouvimos acima, recitativo e aria do italiano Stradella, com os trechos a seguir da ópera Armide, de Jean-Baptiste Lully.

Ouça com atenção e você constatará a profunda diferença de estilos entre eles.

Armide, LWV 71, Act 2: “Invincible héros, c’est par votre courage” (Artémidore, Renaud)

Armide, LWV 71, Act 2: “Arrêtons-nous ici, c’est dans ce lieu fatal” (Hidraot, Armide)

Como você pode perceber, um longo trecho em que muita variedade, mas sem a divisão clara entre recitativo e aria típicos da ópera italiana.

Abertura Italiana

As aberturas das óperas italianas e francesas são outro caso a se observar no mundo das rivalidades musicais. São opostas em tudo: a abertura italiana é dividida em três partes, a 1ª rápida, a 2ª lenta e a 3ª novamente rápida. A francesa é o inverso: lento, rápido, lento.

Vamos começar ouvindo um exemplo de abertura italiana, de Alessandro Scarlatti, que foi um dos mais importantes compositores de ópera italiana do século XVII.

Venere, e Amore: I. Sinfonia

E em seguida, uma abertura de Antonio Vivaldi, da ópera Griselda. Observem a mesma forma – rápido-lento-rápido.

Griselda, RV 718: Sinfonia

Como eu disse no início, a ópera italiana espalhou-se por diversos países europeus, e uma prova disso é a obra que ouviremos em seguida: a abertura da ópera La Spinalba – vejam, um título italiano- mas escrita por Francisco António de Almeida – um compositor barroco português. A execução é do conjunto Os Músicos do Tejo.

Sinfonia da ópera “La Spinalba” de Francisco António de Almeida – “Os Músicos do Tejo

Abertura Francesa

E agora, depois de ouvir três aberturas em estilo italiano, eu tenho certeza de que você está com sua forma e espírito na memória. É hora de compará-los com os de uma abertura francesa, de Jean Baptiste Lully.

Armide, LWV 71, Prologue: Overture

Como eu disse, a forma básica é o inverso da abertura italiana – lento-rápido-lento. Além disso, o trecho lento é sempre em ritmo de caráter processional – o que os músicos chamam de ritmo pontuado – e a sessão lenta é sempre em escrita polifônica ou contrapontística – as melodias entrelaçadas.

A abertura francesa fez um enorme sucesso em outros países, e muitos compositores não franceses a adotaram fielmente. Foi o caso de Händel, que era alemão radicado na Inglaterra. Todas as óperas e oratórios de Händel que eu conheço têm abertura em estilo francês.

Espero que tenha gostado deste post sobre as rivalidades musicais da música barroca!

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Saudações Musicais!

Bach e Vivaldi

Qual seria a relação entre Bach e Vivaldi? Relação pessoal nós sabemos que não houve; Bach nunca saiu da Alemanha; Vivaldi, até onde se sabe, nunca foi até lá.

Além disso, não há nenhuma carta trocada entre os dois mestres. Mesmo assim, sabemos que J. S. Bach conheceu a música de Vivaldi.

Isso é absolutamente certo, porque Bach transcreveu para cravo e para órgão, concertos de Vivaldi escritos originalmente para um ou mais violinos e orquestra.

Essas partituras de Bach ficaram para posteridade, são autênticas, e, portanto, provam que Bach não só conhecia, mas apreciava a música de seu contemporâneo italiano.

Numa rápida pesquisa, eu levantei 10 obras de Bach feitas a partir de Vivaldi.

A mais comentada é o concerto para 4 cravos, catálogo BWV 1065, que é uma transcrição do Concerto para 4 violinos de Vivaldi op. 3 nº 10.

Até mesmo para quem já conhece as duas obras é uma experiência interessante ouvi-las em seguida, e compará-las.

Vivaldi – Concerto in B Minor for 4 Violins, Op. 3 no.10 RV 580: I Allegro

Na versão original, de Vivaldi, temos quatro violinos solistas acompanhados por uma pequena orquestra. Esta orquestra é formada por 1ºs violinos, 2ºs violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e cravo.

J.S. Bach: Concerto for 4 Harpsichords, Strings & Continuo in A Minor, BWV 1065 – I. Allegro

Transcrição

Em sua transcrição, Bach manteve a mesma formação orquestral. Os quatro solistas, contudo, são quatro cravos, em lugar de quatro violinos.

Trata-se do primeiro concerto escrito para quatro instrumentos de teclado, acompanhados por orquestra. Bach manteve escrupulosamente a mesma forma estabelecida por Vivaldi.

Fazendo uma analogia, poderíamos dizer que, se o concerto de Vivaldi fosse um texto literário, o concerto de Bach seria exatamente o mesmo texto, com a mesma história, com o mesmo número de parágrafos e frases. Haveria algumas palavras a mais, que deixariam o texto um pouco mais ornamentado, mas nada seria mudado em sua essência.

Diferenças

Falei como Bach ateve-se escrupulosamente à partitura original de Vivaldi, introduzindo algumas alterações puramente ornamentais. Indo além, podemos também refletir um pouco sobre as diferentes sonoridades obtidas.

Violino e cravo têm diferenças marcantes, e eu chamo a atenção para duas delas.

A primeira é a possibilidade do violino tocar notas muito mais longas que o cravo. No cravo, o instrumentista pressiona uma tecla, uma nota é gerada e dura poucos segundos, até esvair-se totalmente.

O violino, por sua vez, é capaz de emitir uma nota muito longa, muito mais longa que a do cravo. Se o violinista utilizar o arco com cuidado, poderá até simular uma nota de duração indefinida.

Por isso, em alguns trechos, para compensar a falta de sustentação sonora do cravo, Bach, no lugar das notas longas originais, escreve muitas notas em seguida, em fragmentos de escalas ou arpejos.

A segunda grande diferença entre cravo e violino é que o cravista pode tocar várias notas ao mesmo tempo, coisa que no violino é bem complicada,

Assim, em alguns trechos onde Vivaldi escreve para o violino apenas uma nota por vez, Bach escreve para o cravo duas ou mais linhas melódicas simultâneas.

Esses são exemplos das tais diferenças ornamentais que eu citei há pouco.

Órgão

Vamos agora, caro leitor, para outra obra de Vivaldi, transcrita por Bach. Trata-se de um concerto para dois violinos, acompanhados por pequena orquestra, também formada por 1ºs violinos, 2ºs violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e cravo.

Bach transcreveu este concerto não para cravos solistas, como no caso anterior. Ele escolheu para isso o órgão – apenas um órgão.

Este único órgão toca a parte dos dois violinos solistas e também da orquestra – que Bach simplesmente dispensou.

Concerto for 2 Violins in A Minor, Op. 3 No. 8: I. Allegro
Bach: Organ Concerto in A Minor, BWV 593: I. (Allegro)

Como eu dizia há pouco, Bach conseguiu transcrever para um órgão apenas, as notas tocadas pelos dois violinos solistas e pela orquestra.

O leitor pode perguntar: mas isso é possível?

É, caro leitor. Acontece que o órgão é um instrumento de muitos recursos. A partitura desta peça que acabamos de ouvir é escrita em três pentagramas: um para a mão direita, outro para a mão esquerda outra para os pés do organista.

Além disso, o órgão pode fazer as tais notas longas, sustentadas, que o cravo não pode. Comparamos, portanto, duas obras de Vivaldi para violinos solistas e orquestra, com duas transcrições de Bach bem distintas, uma para cravos solistas acompanhados por orquestra, e outra para órgão solo.

Em ambas, o texto musical original, de Vivaldi, foi cuidadosamente respeitado; as modificações introduzidas por Bach têm caráter puramente decorativo. O que variou e muito foram as sonoridades obtidas em cada caso.

Benedeto Marcello

Bach conhecia a obra de muitos outros compositores italianos além de Vivaldi. Isso era natural, pois a música Italiana era apreciada e divulgada em toda a Europa, exercendo quase que uma hegemonia naquele tempo.

Vivaldi era de Veneza, cidade onde se fazia muita boa música há séculos, e outros compositores notáveis foram seus contemporâneos.

Um deles foi Benedeto Marcello, de quem Bach transcreveu para cravo solo um concerto original para violino solo e orquestra.

Bach BWV 981 Harpsichord Concerto in C minor after Benedetto Marcello Concerto Op 1 no 2

Espero que tenha gostado deste post.

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Saudações Musicais!

Falsificações Musicais de Mozart

Anonymous – Wolfgang Amadeus Mozart and Thomas Linley in the family of Gavard des Pivets in Florence.

Todo mundo que aprecia a música de W. A. Mozart se habituou com o fato de que o grande compositor austríaco escreveu 41 sinfonias.

Se nos perguntam: “Quantas sinfonias Mozart compôs?” 41, respondemos imediatamente e com segurança.

Acontece que a coisa não é bem assim, não… já há muito tempo se sabe que isso não é verdade. Há no catálogo de Mozart muitas sinfonias espúrias e de autenticidade duvidosa, mas que, apesar disso, não deixam de ser música de grande beleza. Vamos conhecer algumas delas hoje.

Ludwig von Köchel

Ludwig Alois Ferdinand Ritter von Köchel.

Vamos começar falando do catálogo das obras de Mozart. Ele foi concluído em 1862, ou seja, 70 anos após a morte do compositor, pelo musicólogo austríaco Ludwig von Köchel. Por isso todas as obras de Mozart recebem um número precedido pela letra K – K de Köchel. Por exemplo, a Sinfonia nº 41 está catalogada como K 551. Ou como também costuma se dizer, número Köchel 551.

Pois bem, logo que foi publicado, o catálogo foi aceito como uma lista definitiva das obras do compositor. Ali estavam as 41 sinfonias, e esse número se tornou como que sagrado.

Contudo, esse catálogo nunca foi definitivo, e nem o sr. Köchel o considerava como tal. Ele mesmo publicou um apêndice com obras incompletas ou perdidas. Além disso, o catálogo passou, nesses 161 anos após sua publicação, por várias revisões feitas por outros musicólogos sérios. Muita coisa foi alterada. Já estamos na sexta revisão, que foi feita em 1964, e o número total de sinfonias compostas por Mozart mantém-se desconhecido.

Veja só, caro leitor:  dentre as 41 inicialmente atribuídas a ele sabe-se com certeza que duas são de outros autores, e sobre outras duas há grande dúvida sobre a autenticidade. E além dessas 41 há cerca de outras 20 que são de Mozart com certeza, e mais outras 10 de autenticidade duvidosa.

Pode então estar se perguntando: mas por que é que existem tantas dúvidas? O compositor não escreve a partitura e assina no final, como um pintor assina seu quadro? Isso não basta?

Em princípio é assim, mas depois disso muitas coisas acontecem, para embaralhar os fatos.

Cópias

Mozart sketch book.

Vamos a um exemplo: sabemos hoje que a formação de qualquer compositor europeu incluía o contínuo trabalho de analisar obras de outros compositores, fossem antigos ou seus contemporâneos.

J. S. Bach estudou e analisou as obras de Vivaldi. Mozart fez o mesmo com as obras de Handel, e Beethoven com as de Haydn. E fazia parte dessa atividade de análise, copiar partituras de outro compositor. Enquanto se copiava, se aprendia.

Então Mozart certa vez copiou toda a partitura de uma sinfonia de seu amigo Michael Haydn – apenas copiou as notas, e não se preocupou em escrever o nome do compositor, pois afinal, era uma cópia para ele mesmo usar.

Mais tarde, resolveu apresentar esta sinfonia de M. Haydn em um concerto juntamente com uma sinfonia sua, e usou sua cópia como guia.

Pois bem, quando Köchel montou seu catálogo, tinha em mãos duas partituras de duas sinfonias, que haviam sido executadas em um mesmo concerto, ambas com a caligrafia de Mozart. Não teve dúvidas: considerou as duas como sendo do mesmo compositor. São as sinfonias conhecidas hoje como as de números 36 e 37.

Só em 1907 é que um outro musicólogo concluiu e provou que a sinfonia 37 era de fato de Michael Haydn; por isso é que hoje muita gente estranha quando compara uma coletânea de gravações de todas as sinfonias de Mozart em que a 37 está excluída.

Importante: não se trata de música de má qualidade! Pelo contrário, Michael Haydn foi um grande artista, e vale a pena conhecermos essa obra.

Ela começa com um movimento rápido, Allegro con spirito, precedido por uma introdução lenta, um adagio maestoso.

Essa introdução é de Mozart, e foi incluída quando ele quando apresentou a obra em público. Depois dela tudo é de Michael Haydn.

Michael Haydn, Sinfonia no. 25, com a introdução lenta de Mozart.

Michael Haydn

Era o irmão mais novo de Joseph Haydn, igualmente talentoso, mas menos ambicioso, de modo que apesar de ter tido a oportunidade de fixar-se em um grande centro musical, manteve-se durante 40 anos a serviço da corte de Salzburgo. Lá produziu principalmente muita música sacra, e também uma boa quantidade de música secular. Dentre essas obras não-religiosas encontramos uma grande produção sinfônica – ele escreveu cerca de cerca de 40 sinfonias.

Essa sinfonia que acabamos de ouvir não foi a única atribuída erroneamente a Mozart. Uma outra confusão foi feita com a Sinfonia nº 23 de M. Haydn.

Ela começou assim: no catálogo original de Ludwig von Köchel encontramos uma belíssima fuga para orquestra.

Köchel deu a essa fuga o nº 291. Acontece que essa fuga também era de M Haydn… Por que mais esse erro? Primeiro Köchel teve, mais uma vez, acesso a um manuscrito da fuga com a caligrafia de Mozart. Segundo o próprio Mozart usou um tema bem semelhante ao tema da fuga em um de seus quartetos de cordas.

Esses dois fatos levaram Köchel a considerar a obra como original de Mozart.

Mais tarde foi encontrada uma partitura de uma Sinfonia de M. Haydn, em que o terceiro movimento era justamente essa fuga em questão…

A sinfonia em seu todo é uma belíssima obra, comparável a muitas das melhores sinfonias de Mozart.

Amizade

Como eu disse há pouco, M. Haydn foi um fiel servidor da corte de Salzburgo, cidade natal de W. A. Mozart. Ele assumiu no ano de 1763 o cargo de mestre de capela de um generoso patrono das artes, o arcebispo Schrattenbach. Tinha 26 anos de idade.

Não era pouca coisa. Segundo Leopold Mozart, pai de Wolfgang, a vida musical de Salzburgo era esplendorosa. Com mais de 100 músicos contratados, fazia-se música para diversas atividades cívicas e sociais, religiosas e seculares. Naquele tempo os principais cargos eram destinados somente a músicos italianos – havia até aulas de italiano para os cantores – e não era assim tão fácil a um músico alemão conseguir uma boa posição.

M. Haydn e Leopold Mozart tornaram-se bons amigos, e conheceu muito bem o pequeno Wolfgang, que tinha então 8 anos de idade.

Em 1781 Wolfgang mudou-se para Viena, à revelia de seu pai. Tinha 25 anos. Dois anos depois, voltou para Salzburgo para visitar a família. Encontrou M. Haydn doente, e com um problema em mãos: havia recebido uma encomenda para escrever 6 duos para violino e viola. Faltavam dois deles, o prazo para a entrega estava se esgotando, e Michael não tinha forças para terminar o trabalho. Wolfgang não teve dúvidas: escreveu rapidamente os duos que faltavam e os entregou a Michael.

Ficou então para a história mais esta colaboração entre esses dois grandes músicos.

Wolfgang Amadeus Mozart: Duo for Violin and Viola in G major, K423, Mvt 1.

Aproveito para lhe sugerir mais uma vez um exercício de escuta. Observe como no duo de Mozart a escrita é contrapontística, com os dois instrumentos em diálogo quase o tempo todo, ao passo que no duo de M. Haydn a escrita é do tipo melodia e acompanhamento, com o violino executando a melodia e a viola fazendo o acompanhamento. Ouça com atenção e será fácil perceber.

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Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

Compositores Injustiçados: Pachelbel

Johann Pachelbel

Começo o texto de hoje lhe fazendo uma pergunta: você gosta de J. S. Bach? Ou melhor, você gosta da música de J. S. Bach? Acredito que sim; se está neste site é porque gosta ou está interessado em conhecer música clássica, ou música de concerto. E nesse campo, J. S. Bach é certamente uma unanimidade.

Afinal, difícil não gostar de algo assim…

Pachelbel – Cantata ‘Halleluja! Lobet Den Herrn’

É, mas essa não é de Bach. Parece não é, caro leitor? Mas não é… é de Johann Pachelbel!

Ah, ele então copiou Bach?

Não, porque Pachelbel nasceu nada menos que 32 anos ANTES de J. S. Bach.

Foi Bach quem se inspirou nele, um compositor injustamente muito pouco conhecido.

E por que ele é injustiçado?

Porque apesar de ter tido um importantíssimo papel na evolução da música alemã, deixando uma obra imensa e de altíssima qualidade, influenciando até mesmo um dos maiores gênios musicais de todos os tempos, nada dele é amplamente conhecido… a exceção, que confirma a regra é a peça que você pode ouvir clicando abaixo, com a Orquestra Barroca Tafelmusic.

Cânon em Ré Maior

O Canon em Ré maior é a única obra de Johann Pachelbel amplamente conhecida.

Todo mundo já ouviu! Ela foi gravada centenas de vezes a partir dos anos 60, em coletâneas de peças barrocas; tornou-se um “must” em cerimônia de casamento em todo o mundo. Um verdadeiro símbolo do que é “barroco” em música.

É realmente uma peça delicada e encantadora. Mas um compositor do nível de Pachelbel não merece ser conhecido apenas por uma obra. Aliás, para ser exato, por MEIA obra, visto que na partitura original de Pachelbel esse canon é complementado por uma outra peça, um 2º movimento, que nunca é tocado.

Você pode ouvi-la na íntegra, clicando na imagem abaixo. A execução é da Orquestra Barroca Tafelmusik.

Canon and Gigue in D Major, P. 37: I. Canon “Pachelbel’s Canon”

Família Bach

Vamos então nos valer do post de hoje para conhecer um pouco mais da música desse compositor tão refinado.

Como disse há pouco, a música de Pachelbel influenciou notadamente a música de J. S. Bach. Mas essa influência é mais intensa do que podemos pensar.

Por volta de 1684, Pachelbel, então com 31 anos de idade, foi morar na região de Erfurt e Eisenach, conheceu pessoalmente e tornou-se amigo de ninguém menos que Johann Ambrosius Bach, pai de Johan Sebastian Bach; mais ainda: eles se tornaram compadres, pois Ambrosius convidou Pachelbel para ser padrinho de batismo de sua filha Johann Juditha; e ainda mais: tornou-se professor de Johann Christoph Bach, irmão mais velho de Johann Sebastian, que estava para nascer na ocasião.

Reflexões sobre a Morte

Pachelbel era talvez o mais admirado organista alemão daquela época. Profundo conhecedor do instrumento, foi para ele que criou a maior parte de sua obra: mais de 200 peças.

Clicando na imagem abaixo, podemos ouvir algumas peças para órgão, que fazem parte de uma obra muito particular chamada Musicalische Sterbens-Gedancken, o que em português podemos traduzir como “Reflexões Musicais sobre a Morte”.

Pachelbel a escreveu com 28 anos, logo após a morte de sua primeira filha, vítima de uma epidemia devastadora.

Não se trata de música fúnebres, mas de peças escritas a partir de melodias luteranas, uma delas chamada justamente “Alle Menschen müssen sterben”: todos os homens haverão de morrer.

J. Pachelbel – Alle Menschen müssen sterben

Além de peças para órgão, Pachelbel compôs muitas obras para vozes, dentre as quais destacam-se os motetos: são obras para dois coros, discretamente acompanhados por baixo contínuo.

Abaixo está o link para um deles chamado Der Herr is König und herrlich geschmückt – O Senhor é Rei em deslumbrante majestade.

Procure notar durante a audição os momentos em que todos cantam juntos, bem como quando as vozes dialogam. Esse diálogo é particularmente fácil de perceber nesta gravação quando ocorre entre vozes masculinas e femininas.

Johann Pachelbel- Der Herr ist König und herrlich geschmückt

Deleite Musical

Assim como J. S. Bach, Pachelbel empenhou grande parte de seu tempo e energia trabalhando com música religiosa, para órgão, ou para vozes, como vimos até aqui.

Mas também como Bach, não deixou de produzir música de câmara secular.

Embora seja uma parte menor de sua obra, não é menor em qualidade.

Acredita-se que uma boa parte da música de câmara instrumental que Pachelbel compôs se perdeu; do que restou o que mais se destaca são suas suítes para 2 violinos e baixo contínuo, às quais ele deu o nome de Musicalische Ergötzung – “Deleites Musicais”.

Cada uma dessas suítes é composta por uma sonata, seguida por diversas danças: Alemanda, Gavota, Corrente, Aria, Sarabanda, Giga e um Adagio Final.

Johann Pachelbel: Partita II in C minor (Musicalische Ergötzung)

Relembrando: “Deleite Musical” é realmente o título da obra, dado pelo próprio compositor, para as suas suítes para dois violinos e baixo contínuo.

Depois de ouvir esse elegantíssimo desfile de música da maior finesse e bom gosto, tenho certeza de que você concordará comigo que o sr. Pachelbel não merece ser conhecido apenas pelo seu Canon em ré maior . Uma peça muito agradável, mas que representa muito pouco da sua grandeza artística.

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Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

Debussy e o Oriente

Claude Debussy

No final do século XIX, o romantismo musical já mostrava sinais de desgaste. Embora muitos compositores de grande estatura tenham se mantido fiéis a ele até o começo do século XX, alguns outros procuravam por novas alternativas, na forma musical e na sonoridade.

Inspirar-se em fontes musicais que haviam por muito tempo sido excluídas da música europeia era um dos caminhos possíveis, e um compositor que percebeu isso com muita clareza foi o francês Claude Debussy.

Debussy começou a estudar piano com sete anos de idade, e logo demonstrou mostrou enorme talento. Poderia tranquilamente ter seguido com sucesso a carreira de pianista, mas apaixonou-se pela criação musical e decidiu tornar-se compositor.

Estudou no Conservatório de Paris, e escreveu suas primeiras peças com dezessete anos de idade, sempre contestando as normas acadêmicas. Não gostava de ópera italiana, flertou com o estilo de Wagner, mas logo o abandonou. Estava sempre à procura de sua personalidade como compositor.

Novas Sonoridades

Exposition Universelle de Paris 1889

Pois bem, caro leitor, uma das primeiras experiências que lhe abriu as portas para as novas sonoridades que procurava aconteceu em 1889 – portanto quando ele estava com 27 anos. A tal experiência aconteceu numa das visitas que ele fez à magnífica Exposição Universal realizada em Paris naquele ano.

Comemorava-se os cem anos da queda da Bastilha, símbolo do início da Revolução Francesa. De maio a outubro daquele ano, 32 milhões de pessoas visitaram as diversas atrações oferecidas, como a recém-construída Torre Eiffel, o Diamante Imperial, maior do mundo até então, exposição de locomotivas de última geração, shows diversos como uma representação do “Far West” norte-americano, e por aí afora.

Pois bem, com tudo isso, o que deixou Claude Debussy de boca aberta foi um conjunto musical vindo da Indonésia: um Gamelão!

Gamelão

O Gamelão é um grande conjunto formado basicamente por instrumentos de percussão, principalmente gongos e pratos dos mais variados tipos e tamanhos. E importante: não são afinados segundo os padrões europeus.

Debussy ficou encantado com o que ouviu, chegando a comentar que perto daquilo, os acordes ocidentais pareciam música de criança.

Esses sons da ásia marcaram o compositor para sempre; em 1903 ele iria compôr uma peça para piano chamada Pagodes, numa referência às habitações indonésias que levam esse nome.

Vamos começar nossa audição ouvindo e comparando uma autêntica peça de Gamelão da ilha de Java, com Pagodes, de Debussy.

Orquestra de Gamelão e dança tradicional de Ubud.
Estampes, L. 100: I. Pagodes · Noriko Ogawa.

Escalas

Pois bem, como eu disse há pouco, Debussy ainda muito jovem se encantou com a música de Liszt e Wagner, que era o que havia de mais moderno na 2ª metade do século XIX; contudo, esse encantamento logo se foi, e ele abriu-se para novas possibilidades.

A música de Gamelão trouxe vários elementos que ele passou a usar com frequência em várias obras. Por exemplo, a escala que chamamos de “pentatônica”, ou seja, de cinco notas. A escala básica ocidental, nossa velha conhecida, tem 7 notas, do re mi fa sol la si…

Outra escala que Debussy passou a usar com o objetivo de se afastar da sonoridade europeia foi a escala de tons inteiros.

Outro ponto interessante a ser notado, nessa busca pelo afastamento do romantismo musical, é o que lemos na partitura dessa peça, Pagodes. O próprio Debussy escreveu: “tocar quase sem nuance”.

Nuance, no jargão musical, se refere à intensidade de som. Assim, Debussy quer que a peça seja tocada praticamente no mesmo volume de som, sem “crescendos” ou “diminuendos”. Assim, a ênfase cai sobre os timbres, as cores sonoras, eliminando os excessos expressivos.

Outra informação: Pagodes é na verdade a 1º de uma sequência de três pecas. A 2ª se chama La Soirée dans Grenade, ou em português, a Noite em Granada.

Graças a essa escala, Debussy aqui também se afasta do padrão europeu. Granada, como sabemos, é a região da Espanha que talvez tenha retido a maior influência árabe da Península Ibérica.

Granada

O grande compositor espanhol Manuel de Falla disse sobre a peça: “Não há um único compasso nesta peça que tenha sido retirado do folclore espanhol, mas mesmo assim toda a composição, nos seus mínimos detalhes, retrata admiravelmente a Espanha.”

Vamos então ouvir “A Noite em Granada”, com Noriko Ogawa ao piano.

Estampes, L. 100: II. La soiree dans Grenade · Noriko Ogawa

Estilos

Duas obras em que Debussy consegue sem qualquer dúvida manifestar sua forte personalidade musical, transcendendo o estilo romântico, e conseguindo isso em grande parte pela utilização de elementos musicais não europeus.

A terceira e última peça da suíte chamada “Estampas” chama-se “Os Jardins sob a Chuva”. Esta não tem nenhum elemento não europeu, e procura descrever um jardim da cidade de Orbec, na Normandia, durante uma violenta tempestade. Há muitos elementos descritivos – o vento, os trovões, as gotas de chuva – entremeados com melodias folclóricas.

Na Idade Média, durante a expansão do Cristianismo, toda a música sacra era controlada pela Igreja de Roma; especialmente no período em que os árabes foram sendo expulsos da Europa, a sua música se foi com eles.

A influência árabe e manteve na obra dos grandes compositores espanhóis, como Granados ou Albeniz, e no leste europeu, a música folclórica foi admiravelmente trabalhada por Bela Bartok.

Argélia

Em 1908, quando estava com 34 anos, Holst viajou para a Argélia, por recomendação médica. Precisava de um clima menos frio. Essa viagem inspirou uma suíte para piano, formada por três peças. A 1ª peça ele chamou de Dança Oriental, a 2ª, simplesmente de Dança, e a 3ª, de “Nas Ruas de Ouled-Nail”. No início da 1ª peça podemos ouvir claramente a escala árabe…

A 2ª peça é bem mais sutil – a matéria prima oriental está bastante diluída na harmonia ocidental. E a 3ª peça, nas Ruas de Ouled-Nail, tem um título que precisa ser explicado. Ouled Nail é uma confederação de tribos árabes que vivem em montanhas da Argélia que têm o mesmo nome.

Essas tribos desenvolveram um estilo musical próprio, e uma variação específica da dança do ventre. Os dançarinos e dançarinas apresentavam-se com roupas e joias exuberantes, que chamava a atenção dos turistas.

Tudo isso está na música de Holst: uma base melodia sinuosa remete à dança do ventre, e a orquestração é exuberante como a indumentária dos dançarinos.

Não se trata, caro leitor, de música pitoresca, exótica, como as danças chinesas e árabes dos balés de Tchaikovsky. Aqui, os elementos musicais árabes são usados com verdadeira intenção de criar uma música nunca antes ouvida. Para o ano de 1908 era sem dúvida uma obra muito moderna.

Holst ‘In the Street of Ouled Nails’ (‘Beni Mora’ Oriental Suite)

Carl Nielsen

Como eu disse há pouco, vamos para os frios países do norte, e depois da Inglaterra rumaremos para a Dinamarca.

O mais célebre compositor dinamarquês foi Carl Nielsen, e também ele flertou com a música do oriente.

Esse trecho chama-se “O Mercado de Ispahan”, e faz parte da música que Nielsen compôs em 1919 para a peça teatral “Aladdin”.

Torvet i Isfahan (The Marketplace in Ispahan)

Aladdin

Nesta cena da peça, os personagens chegam ao mercado. Imagine que é você quem está lá, num grande mercado árabe ao ar livre. Imagine quantos pequenos grupos musicais estão distribuídos pela praça, tocando suas danças e canções. Você começa a ouvir um deles, e à medida que anda começa a ouvir outro.

Suas melodias antagônicas se misturam, e como isso não bastasse você começa a ouvir um terceiro grupo. Tudo parece virar uma cacofonia, quando se escuta um quarto grupo. À medida que vai caminhando a cacofonia vai se rarefazendo e tudo termina com a melodia do primeiro grupo.

Pois foi esse efeito inusitado que Nielsen procurou criar. Ele dividiu a orquestra em quatro grupos: o primeiro formado por instrumentos de sopro de madeira e um triângulo; o segundo formado pelas cordas; o terceiro por trompas, trompetes e tímpanos; e o quarto por dois flautins e um gongo.

Como vimos, Nielsen dividiu a orquestra em quatro grupos que superpõem quatro melodias completamente diferentes, que não se combinam, criando assim um efeito espacial, como se estivéssemos de fato caminhando pela praça do mercado.

Para encerrar, ouviremos a Dança de Negros, enérgica, contagiante, e com uma exuberante orquestração.

Nielsen: Aladdin – Concert Suite – 7. Negro Dance · Gothenburg Symphony Orchestra.

Essa foi a Dança de Negros, parte da trilha sonora da peça teatral Aladdin, escrita por Carl Nielsen em 1919.

Espero que tenha gostado deste post.

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Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

A Música Popular na Música Erudita

Tarantella – Alexandre Thomas Francia

Na postagem de hoje, volto a um tema que me é muito caro: a presença da música popular na música erudita. Já tivemos outros textos com o mesmo assunto, mas os exemplos musicais são tantos, que eu me sinto tentado a abordá-lo novamente.

Além disso, para nós, brasileiros, que temos uma música popular tão exuberante, de tanta personalidade e tão respeitada internacionalmente, é muito interessante saber que séculos atrás, os compositores que hoje chamados de eruditos, eram muito ligados à música popular de seus países e de outros.

Quando se fala na presença de melodias e ritmos populares na música clássica, pensa-se logo nas assim chamadas “Escolas Nacionalistas” da segunda metade do século XIX. Nessa época, compositores de poucos países figuravam entre os maiores da Europa: Itália, França, Alemanha e Áustria.

Então, outros países começaram a contribuir para o 1º time de compositores. Exemplo: o norueguês Edvard Grieg, o finlandês Jean Sibelius, o tcheco Smetana e muitos mais.

Mas essa história é bem conhecida. Os apreciadores de música de concerto sabem que esses compositores usaram ritmos e melodias da música popular de seus respectivos países.

Jean-Philippe Rameau

Jean-Philippe Rameau (1683–1764)

O que pouca gente sabe é que os compositores anteriores a esses, ou seja, aqueles que viveram no século XVIII e na primeira metade do século XIX já usavam muita música popular. Até mesmo os mais sérios e austeros, como Beethoven.

Daqui a pouco voltaremos a Beethoven. Vamos começar ainda mais distantes no tempo, com um compositor francês do século XVIII, entre 1683 e 1764: Jean-Philippe Rameau.

Rameau foi um dos maiores paradigmas do que hoje chamamos de músico erudito. O seu “Tratado de Harmonia”, escrito em 1722, foi um dos maiores acontecimentos da música europeia, e é estudado até hoje.

Mas esse grande erudito não abria mão de unir a música popular de seu tempo, com música intelectualizada, fruto de um pensamento musical sofisticado.

Tamburin

Vamos então a um exemplo, um trecho de Dardanus, uma de suas óperas mais importantes. Nele Rameau usa um ritmo popular chamado “tamburin” – Tamborim, em português, e usa, inclusive tambores marcando o ritmo. A peça começa com a orquestra tocando sozinha e em seguida une-se a ela um coral.

Um exemplo de ritmo popular francês usado em uma grande obra classificada como erudita.

Dardanus : Act 3 “Chantons tous”

Rameau se tornou um grande compositor de ópera já na maturidade. Antes disso, era organista, um grande e importante organista e cravista. Compôs muito para o cravo, e nessas obras também encontramos o ritmo do tamburin.

J. Haydn

Uma boa maneira de entender a presença da música popular nas obras assim chamadas de eruditas é fazendo comparações. Nas sinfonias clássicas, por exemplo, é possível encontrarmos algumas muito interessante.

Vemos uma delas na Sinfonia nº 82, de J. Haydn. O 3º movimento da sinfonia é uma dança tipicamente aristocrática. E o minueto dessa sinfonia 82 é particularmente solene e cheio de reverências aristocráticas.

Pois bem, terminando o minueto vem o 4º movimento, e esse é uma dança de indubitável sabor popular, folclórico.

O terceiro movimento, o minueto, uma típica dança aristocrática, e o 4º movimento, Finale, uma típica dança popular.

Mozart

Vejamos agora um exemplo de W. A. Mozart.

Mozart: Cosi fan tutte: La mia Dorabella capace non e

Como pode perceber, trata-se de um trecho de ópera. Mas por baixo dessa voz tipicamente operística, Mozart coloca um ritmo popular italiano: a Tarantella, afinal, a história dessa ópera, chamada Cosi fan tutte, acontece em Nápoles.

É o canto erudito, sofisticado, unido a um dos mais conhecidos ritmos populares de todos os tempos.

Tarantella

O caro leitor pode achar que a tarantella ficou demasiadamente em segundo plano. É verdade, e essa foi realmente a intenção do compositor, pois as vozes são os protagonistas aqui.

Sendo assim, vamos a uma peça puramente instrumental, em que o ritmo saltitante da tarantella está sob os holofotes! É o 4º movimento da 3ª Sinfonia de Franz Schubert, mais um exemplo do uso de um ritmo bem popular em uma obra considerada erudita.

Nos séculos XVIII e XIX, eram justamente nos últimos movimentos das sinfonias e concertos que os elementos musicais populares apareciam com mais evidência; isso fazia parte da estética musical da época.

Beethoven

É hora então de voltarmos a Beethoven, um dos mais austeros e sérios compositores. Nas suas sinfonias Beethoven também utilizou ritmos de dança bastante animados e de caráter nitidamente popular. Um bom exemplo é o 4º movimento e último movimento da 7ª Sinfonia, inspirado numa dança popular húngara chamada Verbunko que, aliás, existe até hoje!. É um ritmo verdadeiramente irresistível.

Beethoven, Sinfonia nº 7: 4º Movimento

Pois é caro leitor, Beethoven tem essa imagem de compositor extremamente sério e austero, claro, ele era mesmo um homem austero, um músico muito, muito sério. Mas isso não quer dizer que ele simplesmente ignorava a música popular da sua época.

Um delicioso exemplo que comprova isso que eu digo são os muitos arranjos que ele fez de canções populares. Eu acho essas pecinhas simplesmente encantadoras!!!

Pois foi uma melodia popular simples como essas, que Beethoven usou como matéria prima de uma de suas obras mais monumentais.

Estou falando de uma singela contradança, catalogada como WoO 14, no. 7.

Sinfonia n.º 3

E agora, a peça grandiosa que Beethoven fez a partir dela: o 4º e último movimento da 3ª Sinfonia, a Sinfonia Eroica. Note como Beethoven não mostra a melodia de imediato; de modo genial ele a vai construindo aos poucos, de modo que ela só surge depois de quase dois minutos…

Beethoven: Symphony No. 3, Eroica, 1st movement

Schubert

A cidade de Viena sempre foi um dos mais importantes centros musicais Europeus; sempre teve uma vida musical rica e diversificada, mantida pelo governo e por patrocinadores privados; por isso atraiu tantos compositores de grande talento que procuraram desenvolver suas carreiras, como foi o caso de Brahms, nascido em Hamburgo, de Beethoven, nascido em Bonn, de Mozart, nascido em Salzburg, de Haydn, nascido em Rohrau, uma pequena aldeia no interior da Áustria, do italiano Salieri e de muitos outros.

Por tudo isso, foi também uma das primeiras cidades onde nasceu uma forte música popular urbana. E um dos compositores austríacos que mais se deixou influenciar por essa música popular foi alguém que não veio de fora, mas que nasceu lá mesmo: Franz Schubert.

Não reconhecido enquanto vivo, mas hoje considerado um dos maiores gênios musicais de todos os tempos, Schubert deixou em várias de suas obras o sabor da música popular vienense. Dentre eles o belíssimo: o 3º movimento de sua Sonata Arpeggione.

Carl Maria von Weber

Na ópera alemã, a música popular também se fez presente. Uma das mais importantes obras do gênero é “O Franco Atirador”, de Carl Maria von Weber.

Nesta ópera Weber procurou um caminho para a criação de um estilo operístico tipicamente germânico, livre das influências da ópera italiana, dominante em toda a Europa.

E para isso recorreu, entre outras coisas, à música popular de seu país. Logo no início da obra, há um encontro de camponeses em festa, e a música que se ouve é tipicamente popular.

Mais adiante há uma cena em uma taberna, com muito vinho e dança. Novamente, o gênero musical é indubitavelmente popular.

No enredo da obra, a principal personagem feminina está noiva. Antes de seu casamento, ela é visitada pelas damas de honra, que cantam uma canção popular. E um dos trechos mais populares da obra é o coro dos caçadores….

Mas talvez, a essa altura, alguém esteja perguntando: se isso tudo é popular, o que será erudito?

A melhor resposta que podemos ter é a audição da abertura desta ópera. Ela contém os principais temas da obra, montados numa estrutura admirável, que nos leva às mais diferentes emoções. Esta verdadeira arquitetura, levada a cabo em função das emoções e da história, é fruto de grande erudição.

Carl Maria von Weber (1786-1826) – Abertura da opera “O Franco Atirador”

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Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

Moto Perpétuo

Estudos de Leonardo da Vinci sobre movimento perpétuo.

Caro leitor, imagine um pequeno funil: uma extremidade larga, na qual se pode verter algum líquido, e a outra extremidade fina, por onde esse líquido sai. Até aí, nada de mais.

Agora imagine encompridar essa segunda extremidade, dobrá-la para cima e inseri-la dentro da outra extremidade do próprio funil. Assim, ao verter o líquido esse voltaria para a extremidade maior, gerando um movimento contínuo que nunca cessaria.

Seria o princípio de uma máquina que jamais pararia de funcionar, com consumo de energia zero: é o sonho dourado de muitos cientistas.

Algo que revolucionaria o mundo, acabaria com a poluição e o desgaste de recursos naturais.

Os cientistas já têm até um nome para ela: Perpetuum Mobile, em latim, que significa Movimento Perpétuo em português.

Infelizmente, a comunidade científica tem como certo que isso é totalmente impossível – pelo menos com os conhecimentos de que dispomos hoje.

Já na música a coisa não é bem assim; muitos compositores se inspiraram nos cientistas e criaram peças às quais deram justamente o nome de Perpetuum Mobile, ou Moto Perpétuo.

Podem não ter criado algo que salvaria o planeta, mas quem sabe não ajudaram muita gente – incluindo os cientistas – a serem mais felizes?

O frasco com auto-fluxo de Robert Boyle.

Niccolò Paganini

Pois bem, caro leitor, nossa postagem de hoje terá como tema o moto perpétuo em música, e começaremos com … música!

O Moto Perpétuo, para violino e orquestra, opus 11, de Niccoló Paganini:

Paganini: Moto perpetuo, Op. 11 · Academy of St Martin in the Fields · Sir Neville Marriner · Niccolò Paganini

Esse Moto Perpétuo de Paganini é muito célebre, a ponto de muita gente pensar que se trata de uma obra exclusiva, a única do gênero. A verdade, contudo, é que muitos outros compositores escreveram obras desse tipo, e com esse título, até muito antes de Paganini.

Vejamos alguns.

Georg Philipp Telemann

Uma delas é a peça intitulada Perpetuum Mobile, 2º movimento da Suíte para cordas e baixo contínuo em Re maior de Georg Philipp Telemann. Essa obra está catalogada com o nº TWV 55:D12.

Claro que se trata de uma música bem mais simples que a de Paganini, pois na época de Telemann não havia ainda o alto virtuosismo desenvolvido melo mestre italiano.

Telemann viveu entre 1681 e 1767, enquanto Paganini nasceu em 1782, vindo a falecer em 1840. Foi a época do início do romantismo e do culto às personalidades dos grandes solistas, como Liszt e Chopin.

O Moto Perpétuo de Paganini se tornou célebre por ser o primeiro muito longo para o gênero – 4’30” de música ininterrupta – exigindo grande fôlego do executante.

Já a peça de Telemann é fiel à ideia de um movimento rítmico contínuo, mas sem qualquer virtuosismo.

Camille Saint-Säens

Como você já deve ter pensado, o grande desafio de tocar uma peça desse gênero é não tropeçar, digamos assim, não errar nenhuma nota. E isso dá muito trabalho: tem-se que estudar trechinho por trechinho, e pouco a pouco juntá-los, primeiro devagar e depois ir aumentando a dificuldade.

Na hora de tocar em público, é preciso ter um enorme sangue frio. Esse sangue frio dificilmente se aprende: é uma característica de personalidade indispensável a um solista.

Caminhando no tempo, encontramo-nos com um compositor que nasceu na primeira metade do século XIX: o francês Camille Saint-Säens (1835 e 1921).

Ele tem uma interessante coleção de estudos para piano, para serem tocados apenas pela mão esquerda do pianista. Um desses estudos é justamente um moto perpétuo.

Saint-Säens deu o nome de Moto Perpétuo ao terceiro de seus seis estudos para mão esquerda, opus 135.

Este estudo mostra que uma peça deste gênero não precisa ser virtuosística nem frenética – basta que tenha um ritmo constante e ininterrupto.

6 Études pour la main gauche seule, Op. 135: No. 3. Moto perpetuo: Allegretto-Doux et tranquille · Geoffrey Burleson

Os violinistas que desejam ter um moto perpétuo em seu repertório não têm à disposição apenas a célebre obra de Paganini.

Há um outro muito bonito – talvez até mais que o de Paganini – que é muito apreciado. Trata-se do Concerto Capricho Opus 5 nº 4 do compositor Ottokar Novacek.

Novacek nasceu em 1866 numa cidade que hoje pertence à Sérvia, mas que à época fazia parte do Império Austro-Húngaro. Foi um grande violinista e violista, integrante da Orquestra do Gewandhaus de Leipzig. Emigrou para os Estados Unidos, tornando-se membro da Sinfônica de Boston. Faleceu nesse país em 1900.

Por ter falecido muito jovem, Novacek deixou uma obra pequena.

Ela inclui canções, peças para violino e um concerto para piano, que foi dedicado ao grande compositor e pianista italiano Ferruccio Busoni.

Ralph Vaughan-Williams

Aliás, Busoni também escreveu um moto perpetuo, o Perpetuum Mobile para piano. Como estamos vendo, encontramos obras do gênero de compositores de diversas épocas e nacionalidades, mas é de se notar como os compositores britânicos parecem ter uma especial predileção por ele.

Vamos ouvir o primeiro um movimento da Suíte para Viola e Orquestra de Ralph Vaughan-Williams, em que sob as melodias que vão e vêm, tocadas pela orquestra, está ali, sempre firme, um frenético movimento do solista.

Ralph Vaughan Williams: Suite for Viola & Orchestra – I. Prelude. Allegro moderato / Timothy Ridout

Outros compositores britânicos que escreveram “motos perpétuos” foram Frank Bridge, York Bowen, Malcolm Arnold e Benjamin Britten

Com isso tudo, caro leitor, quis lhe mostrar como esse gênero, diferente de muitos outros, tem uma característica bem simples e definida: um movimento rítmico ininterrupto. E é tão versátil que pode ser usado como obra avulsa, ou inserido nos mais diversos gêneros como sonatas, concertos ou suítes.

Para terminar, volto a Paganini, para deixar uma dica de leitura.

É o livro escrito pelo conceituado crítico brasileiro João Marcos Coelho.

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Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

Sinfonia Inacabada

Cara leitora, caro leitor: qualquer apreciador de música de concerto, quando ouve a expressão “Sinfonia Inacabada”, pensa imediatamente na célebre Sinfonia Inacabada, de Franz Schubert.

Franz Schubert, autor da célebre Sinfonia Inacabada.
O compositor austríaco Franz Schubert

O que muitos não sabem é que, além desta, há muitas outras obras não concluídas, de diversos autores.

Contudo é natural que pensemos imediatamente em Schubert, pois de todas as obras ou sinfonias inacabadas do repertório, ela é de longe a mais célebre.   

Nesta postagem, vamos conhecer algumas coisas interessantes sobre ela, e em seguida veremos outras obras que também não puderam ser completadas.

Inacabada, por quê?

O mais curioso em relação à Sinfonia Inacabada, a nº 8 de Schubert, é que ele poderia tranquilamente tê-la concluído, se quisesse.

Schubert terminou o segundo movimento da obra em 1822, e faleceu em 1828. Teve portanto mais 6 anos de vida, e mesmo assim, não concluiu a terminou.

Até hoje os musicólogos se perguntam porque.

O que sabemos com certeza é que Schubert não concebeu a obra para ter apenas dois movimentos, como alguns pensam, pois ele efetivamente começou a escrever um terceiro.   

Partitura do 30. movimento, não concluído, da Sinfonia Inacabada, de Schubert.
Primeira página da partitura do 3o. movimento, inconcluso, da “Sinfonia Inacabada”, de Schubert.

Schubert abandonou o projeto, muito provavelmente porque envolveu-se com outros trabalhos mais urgentes, que lhe podiam render algum dinheiro ou notoriedade.

O trabalho foi efetivamente deixado de lado, e nunca foi executado durante a vida do compositor.

A primeira execução da Sinfonia Inacabada só aconteceu em 1865, em Viena – pasme, caro leitor – 37 anos após a morte de Schubert!

A “Inacabada” é uma obra grande importância. Mesmo incompleta, ela foi  sem qualquer dúvida um dos marcos da primeira fase do romantismo na  música européia.

Ainda que lhe faltem o 3º e o 4º movimento, ela é perfeita, de grande personalidade.

Nada parecido com ela havia sido feito até então.

Outra obra inacabada: o Requiem de Mozart

Depois da Sinfonia nº 8 de Schubert, a obra inacabada mais lembrada pela maioria das pessoas é a Missa de Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart.

Diferente de Schubert, sabemos porque Mozart não concluiu seu Requiem.

Em 1791, Mozart vivia sérios problemas financeiros, e de modo que aceitou várias encomendas.

Assim, neste ano ele estava envolvido com os seguintes trabalhos: a composição da ópera “A Flauta Mágica”; a composição da ópera “La Clemenza di Tito”; o concerto para clarineta e orquestra; e o Requiem.

Com todo essa atividade, que o deixava verdadeiramente fatigado, Mozart teve de postergar a composição do Requiem.

Retrato inacabado de Mozart.
Joseph Lange, 1782.
Retrato inacabado de Mozart, feito em 1782, de autoria de Joseph Lange. Segundo depoimentos de contemporâneos do compositor, é muito fiel à aparência de Mozart.

Após concluir duas obras primas absolutas, o concerto para clarineta e a ópera Flauta Mágica – da qual teve que se envolver também na produção e direção da primeira récita – Mozart voltou ao Requiem. Mas seria tarde demais.

Sua saúde se deterioraria rapidamente, e ele viria a falecer no dia 5 de dezembro deste ano de 1791.

Quem completou o Requiem?

Após a morte de Mozart, Constanze Weber, sua esposa, pediu a um discípulo do compositor, chamado Joseph Eybler, que completasse o Requiem.

Ele fez algum trabalho de orquestração, mas logo devolveu os manuscritos, sentindo-se incapaz de concluir a obra.

Constanze procurou outros compositores, e por fim entregou a partitura a outro aluno de Mozart, Franz Xaver Süssmayr, que terminou o trabalho.

Partitura do Requiem de Mozart, outro exemplo de obra prima inacabada.
Manuscrito original do Requiem, preservado na Biblioteca Nacional da Áustria

Além de concluí-lo, Süssmayr também falsificou a assinatura de Mozart, com a data de 1792, embora todos soubessem que Mozart já estava morto.

Não se sabe com 100% de certeza o que foi feito por Mozart e o que foi feito por Süssmayr. Por exemplo, não se encontrou nenhum trecho das seções finais, Sanctus, Benedicts e Agnus Dei, com caligrafia de Mozart.

Mas a música é boa demais para acreditarmos que seja toda ela de Süssmayr. É possível que ele tivesse rascunhos de Mozart em que se basear.

As Décimas Inacabadas

Em 1913 o compositor Arnold Schoenberg um fez um discurso dizendo que ninguém seria capaz de romper “limite da 9ª sinfonia”

Vejamos:

Beethoven escreveu 9 e começou uma 10ª da qual restaram apenas esboços.

O mesmo aconteceu com Schubert, que escreveu 9 sinfonias.

E o mesmo com Gustav Mahler, que deixou sua 10ª sinfonia inacabada.

Gustav Mahler, também aultor de uma Sinfonia Inacabada.
O Compositor Gustav Mahler (1860-1911)

Ele iniciou a obra em 1910, já com a saúde deblitada por problemas cardíacos.

Viria a falecer no ano seguinte, e apenas a partitura do 1º movimento da 10ª sinfonia, um adagio, estava pronta.

Ainda assim, não em forma definitiva, pois se tivesse vivido mais tempo, Mahler certamente o revisaria.

Dos outros movimentos restaram apenas esboços e pedaços avulsos.

Arqueologia Musical

Assim como aconteceu com a Sinfonia Inacabada de Schubert,  outros compositores tentaram terminar a décima sinfonia de Mahler.

Um músicólogo inglês chamado Deryke Cooke fez uma reconstrução dos três movimentos restantes, que foi apresentada em público pela 1ª vez em Londres em 1964.

Contudo, hoje em dia apenas o 1º movimento da 10º sinfonia de Mahler, é tocado.

O Concerto Inacabado

Voltemos agora nossa atenção para o compositor húngaro Béla Bartok.

Bela Bartok, cujo concerto para viola é também uma obra inacabada.
O Compositor Húngaro Béla Bartok. (1881-1945)

Bartok faleceu em 1945, com 64 anos de idade.

Cinco anos antes ele havia emigrado para os Estados Unidos, deixando para trás seu país, devido à situação politica pela qual passava a Europa, com o início da 2ª grande guerra.

Foram tempos dificeis para ele, pois sua saúde começava a declinar em função de uma leucemia, e sua música era pouco tocada.

Uma ajuda generosa veio do poderoso maestro Sergei Koussevitzky, diretor da Boston Symphony, que lhe encomendou uma grande obra.

Daí surgiu o magnífico “Concerto para Orquestra”, uma das mais conhecidas e executadas obras do compositor.

Em seguida, o violista escocês radicado nos Estados Unidos, William Primrose, encomendou-lhe um concerto para viola.

Bartok conseguiu escrever um rascunho, no qual toda a parte da viola solista estava completa, mas muito pouco havia do acompanhamento orquestral.

Após sua morte, esse manuscrito foi entregue a seu aluno Tibor Serly, que completou a obra.

A sorte, nesse caso, é que, diferente dos alunos de Mozart, Serly era um bom compositor, de modo que a associação com Bartok pode ser considerada um sucesso.

A partitura final resultou num belíssimo concerto, tocado com frequência.

Podemos dizer sem medo de errar que se tratou efetivamente de uma obra a quatro mãos.

Dicas de audições

Para encerrar, deixo aqui algumas dicas para você ouvir as obras que eu citei no texto.

O pungente segundo movimento da Sinfonia Inacabada de Schubert, executado na sala de concertos do Mozarteum de Salzburgo.

Philharmonie Salzburg Elisabeth Fuchs, regente.

O “Dies Irae”, do Requiem de Mozart, com legendas em português.

Décima Sinfonia de Mahler, adagio.

Filarmônica de Viena dirigida por Leonardo Bernstein

O Concerto para viola de Bartok e Sérly.

Luosha Fang, viola. Orquestra Sinfônica da Rádio da Eslováquia.

Dicas de leitura

Aqui algumas dicas de leitura.

Dois ótimos livros sobre Schubert e Mozart.

Ao clicar na imagem de cada livro, você irá para o site da Amazon.

Allegro, andante, adagio, e outras palavras.

Com freqüência eu recebo mensagens perguntando o significado de palavras como Allegro, Andante, Adagio.

Simples: Allegro, Andante e Adagio, entre outras, são palavras utilizadas pelos compositores para indicar a velocidade com a qual suas obras devem ser tocadas.

Quando um compositor escreve “Allegro” no início de uma partitura, ele está dizendo para o intérprete que a peça em questão deve ser tocada em andamento rápido.

Allegro - exemplo

Quando escreve “Andante” no início de uma partitura, ele está dizendo para o intérprete que a peça deve ser tocada em andamento moderado, nem rápido, nem devagar.

Andante - exemplo

E a palavra “Adagio”, escrita na partitura, indica que a música deve ser tocada lentamente.

Adagio - exemplo

Isso, caro leitor, é o básico;  podemos nos aprofundar no assunto.

Evidentemente não existem apenas três velocidades em que as obras musicais podem ser tocadas.

Para indicar todas as demais possibilidades, os compositores dispõem de muitas outras palavras.

Outras possibilidades

Para músicas bem rápidas as palavras “Vivace”, “Presto” ou “Prestissimo” são usadas

Também há expressões compostas por duas ou mais palavras: Allegro Molto, Allegro Vivace, Allegro Assai, Alegro ma non troppo.

Allegro vivace - exemplo

Allegro Molto pode ser traduzido por “muito alegre”. Allegro Vivace por “alegre e vivaz”, Allegro Assai por “bastante alegre” e Allegro ma non troppo por “alegre mas não muito”.

Voltemos aos andamentos lentos. Além de Adagio, são usados ainda “Largo” e “Grave”.

E aqui continuam valendo as combinações, como Adagio molto, Largo ma non tanto.

Portanto as expressões “troppo”, “molto”, “ma non tanto”, entre outras, “temperam”, por assim dizer, essas volocidades extremas.

Mas há outras combinações que não dizem respeito apenas à velocidade, mas também ao caráter que a música em questão deve ter.

Por exemplo: “Largo e Mesto”, que quer dizer “lento e melancólico”. “Allegro con brio”. “Vivace con spirito”. “Allegro con fuoco” – alegre e com fogo. “Adagio Grazioso”, entre tantas outras possibilidades.

Adagio - exemplo

Andamentos médios

Vamos agora aos andamentos médios ou moderados, que    também podem apresentar muitas sutilezas.

Como vimos, a palavra mais usada nesse caso é andante, ou seja, a velocidade em que se anda.

Isso, por si, já pode dar margem a muitas interpretações – afinal, pode-se andar em muitas velocidades diferentes – o que faz com que o intérprete tenha que apelar para o seu bom senso, intuição e gosto pessoal.

E além do andante, os compositores têm à sua disposicão para os andamentos médios as palavras “larghetto”, e “andantino”.

Em teoria o larghetto é mais lento que o andante, enquanto o andantino é um pouco mais rápido.

Um andamento que está entre os moderados mas já na fronteira com os rápidos é o allegretto – em português, “allegrinho”.

Allegretto - exemplo

Andamentos lentos

Agora, as diferenças entre Adagio, Largo e Grave – os andamentos lentos.

Adagio, em italiano quer dizer lentamente.

Largo    tem o mesmo significado que em português: temos portanto que usar nossa imaginação e procurar compreender o que seria uma música larga, ampla, espaçosa…

Um tanto subjetivo, não é, caro ouvinte? Na hora de tocar um Largo, além de tocar lentamente, o intérprete tem que passar essa sensação de amplitude…

Temos ainda, associada aos andamentos lentos, a palavra “Grave”.

Grave tem em italiano o mesmo sentido que em português: circunspecto, sério, severo, rígido.

Assim, além de tocar a música lentamente, os intérpretes devem buscar esse caráter.

Às vezes algumas dessas indicações podem nos confundir.

Vejam esta por exemplo, que está associada ao primeiro movimento da Sonata para piano no. 8, de Beethoven:

“Grave. Allegro di molto e con brio”

Mas como assim? Grave e Allegro di molto, ao mesmo tempo?

Acontece, caro leitor, que não é ao mesmo tempo. Essa expressão quer dizer que a música começa lenta (Grave) e depois fica rápida (Allegro).

É mesmo uma miríade de possibilidades!

Abaixo temos uma foto da contracapa de um CD com três sinfonias de Haydn. Cada sinfonia tem 4 movimentos. São portanto 12 andamentos diferentes. Aí você terá uma pequeno panorama dessa “miríade” à qual me referi.

Allegro Andante Adagio exemplos em um CD

Aviso importante

Essas expressões todas são indispensáveis aos intérpretes. Toda vez que um intérprete vai estudar uma nova partitura, ele deve prestar muita atenção nessas indicações, o que é indispensável para uma execução fiel às intenções do compositor.

Mas para os ouvintes, elas não têm grande importância. São informações que podem ser eventualmente interessantes para alguns. Mas de modo algum o ouvinte precisa se preocupar com elas para usufruir de boa música.

E falando em usufruir, termino este texto com três links para você ouvir peças em três andamentos totalmente diferentes: um Larghetto, um Allegro molto appassionato e um Adagio cantabile.

Mas antes de ouvir, vá até o final da página e deixe seu comentário e sugestões para novas postagens.

Saudações Musicais do maestro

João Mauricio Galindo

Mozart, 2o. movimento, Larghetto do Concerto para Piano no. 26. Friedrich Gulda, solista e regente. Orquestra Filarmônica de Munique.
Allegro molto appassionato: primeiro movimento do concerto para violino e orquestra de Felix Mendelssohn. Intérpretes não indicados.
Adagio cantabile, 2o. movimento da Sonata para piano no. 8 de Ludwig van Beethoven. Interpretação de Daniel Baremboin