A
palavra sonata é mais uma daquelas que confunde muita gente; isso
porque ela não se refere a um tipo específico de música.
Sonatas podem ser muito diferentes; uma sonata do início do século XVII é muito diferente de uma sonata do início do século XVIII, e as duas são diferentes de uma sonata feita no século XIX.
Neste
artigo vamos
nos ater à sonata clássica, aquela que se
se desenvolveu e consolidou durante a segunda metade do século
XVIII.
As
sonatas
clássicas
bem conhecidas
pelos amantes de música de concerto dos
dias atuais
são principalmente
as
de Wolfgang
Amadeus Mozart
e Franz Joseph Haydn.
Elas
têm um modelo muito bem definido, que é o seguinte: três
movimentos, sendo o 1º em andamento rápido, o 2º em andamento
lento, e o 3º em andamento rápido.
Mas
isso não é tudo!
O
1º movimento é o mais desenvolvido, é aquele em que o compositor
mais usa suas habilidades intelectuais,
trabalhando inteligentemente o
desenvolvimento dos temas.
O
2º movimento
é
mais afetuoso, emocional.
O 3o. movimento é o mais divertido, quase sempre em ritmo de dança.
Assim,
além de andamentos contrastantes,
cada um tem uma personalidade própria.
Para compreender bem esse modelo, uma boa idéia é ouvir uma sonata curta, concisa, em que essas características sejam bem claras.
Sugiro
assim a sonata para piano de Mozart, catalogada com o número KV 545,
conhecida como “Sonata Semplice”.
Eu
sugeri
esta sonata
por ser bem curta, concisa e objetiva.
Mas
agora vamos avançar um pouco.
Há
duas coisas para dizer:
1ª:
a grande maioria das sonatas dessa época eram mais muito mais
longas, bem mais desenvolvidas.
2ª:
elas não tinham que ser necessariamente para piano.
Esse
modelo podia ser aplicado a qualquer instrumento ou combinação
instrumental.
Uma
combinação consagrada era o piano mais um instrumento melódico
qualquer, como o violino, o violoncelo, a flauta, etc.
Sugiro
então a audição de uma
sonata que tem essas duas características.
Ela dura cerca de 2o minutos – contra 10 minutos da Sonata Semplice de Mozart
Trata-se
de uma sonata para Viola e Piano
de
Johann
Nepomuk Hummel, que foi contemporâneo de Beethoven.
Embora seja pouco conhecido hoje em dia, Hummel é um típico representante do classicismo, muito admirado em seu tempo tanto como pianista como compositor.
Aqui temos os três movimentos em links separados.
Este é portanto o modelo, o padrão básico da sonata clássica; mas agora atenção: os padrões da música clássica não são, como muita gente pensa, assim tão rígidos.
Sobre
eles são possíveis muitas variações, e é isso que vamos
conferir
ouvindo
uma
das sonatas para piano de Beethoven, conhecida pelo apelido de “A
Caça”
É
a sua sonata de número 18, escrita quando ele tinha 32 anos de
idade.
É
uma obra que introduz algumas modificações na estrutura da sonata
clássica, mas sem perder sua essência.
Em
primeiro lugar, temos quatro e não três movimentos.
O primeiro movimento é em andamento rápido.
O segundo movimento não é lento e afetuoso, como seria de se esperar. Também é rápido, mas tem um caráter bem diferente do movimento anterior.
É mais descontraído,contrastando com a seriedade do anterior.
Temos então mais um pequeno desvio da forma original da sonata. O terceiro movimento é um minueto – uma dança, portanto. Mas ele apresenta o caráter delicado e afetuoso que faltou no movimento anterior.
Mantendo o padrão tradicional, a sonata se encerra com um movimento rápido em ritmo de dança.Presto com fuoco: rápido e com fogo!
Durante muito tempo, mas muito tempo tempo mesmo, desde a antiguidade e por vários séculos, a música européia foi fundamentalmente vocal.
A maioria dos instrumentos eram rústicos, tinham poucos recursos, e a técnica instrumental era muito limitada.
Isso tudo porém foi mudando no final da idade média; e no século XVI, em pleno renascimento, surgiu uma verdadeira festa de timbres, promovida por vários instrumentos diferentes.
No período barroco essa festa se sofisticou!
No início do século XVII, o compositor alemão Michael Pretorius compilou uma enorme coleção de danças da idade média e renascença, que nos dá uma ótima idéia da música instrumental daquele tempo!
Você pode ouvir várias aqui:
Esta
festa começou na renascença, e continuou daí pra frente, mas com
uma diferença muito importante: a especialização e definição
instrumental.
Até
uma certa época, os compositores não definiam que instrumentos
deveriam ser usados. Ele escrevia a música, e a escolha dos
instrumentos ficava a cargo dos próprios executantes.
Assim,
a mesma peça podia ser tocada por um conjunto de flautas, ou por um
conjunto de violas da gamba .
Mas
essa indefinição não iria durar muito tempo.
No
período barroco, os compositores começam a compor especialmente
para determinado instrumento ou conjunto de instrumentos.
Vejamos alguns exemplos, começando pelos violoncellos.
Giuseppe Maria Jacchini, que viveu entre 1670 e 1727, e foi portanto, contemporâneo de Antônio Vivaldi, foi um pioneiro do violoncello.
Foi um dos primeiros violoncelistas-compositores da Europa.
Nada mais natural, portanto, que a maioria das peças que escreveu sejam para esse intrumento. Ele foi um dos responsáveis por fazer do violoncello um instrumentos solista.
Confira:
Vamos às flautas. E quando falamos delas e de música barroca, é muito natural nos voltarmos para o repertório francês, com o compositor Joseph Bodin de Boismortier, que viveu entre 1689 e 1755 e foi portanto contemporâneo de J. S. Bach e Vivaldi.
Boismortier foi um muito popular entre os apreciadores de música franceses de seu tempo. Sua música era tão bem aceita, que ele foi um dos primeiros a ter uma certa independência financeira, sem precisar de patrocinadores, ou seja: ganhou um bom dinheiro vendendo suas partituras e apresentando-se em concertos públicos – quando esses eram ainda uma grande novidade.
Muitos
compositores franceses tinham uma especial predileção pela flauta,
e Boismortier foi um deles. E numa época em que muitos escreviam
para a flauta doce, ele dedicou-se especialmente à flauta
transversal.
Escreveu uma série de concertos para conjunto de cinco flautas transversais que foram uma total novidade para a época.
Ouça aqui:
Agora uma combinação que pode surpreender alguns ouvintes: dois bandolins, acompanhados por orquestra de cordas. Eu falo em surpreender porque muitas pessoas associam o bandolim à música popular brasileira, em especial o chorinho; muita gente não imagina que o bandolim tenha sido usado na música clássica européia.
Mas foi, sim, e muito. Temos belíssimos exemplos de Vivaldi!
Vários musicólogos acreditam que estes concertos foram compostos para a orquestra de meninas que viviam no “ospedale della Pietà”, de Veneza. Eram órfãs, filhas ilegítimas ou de famílias muito pobres. Segundo comentários da época, os conjuntos musicais formadas por essas meninas tinham um nível artístico elevadíssimo.
Vivaldi tinha especial carinho por esse trabalho. Compôs para o Ospedalle durante quase 40 anos, praticamente até o final de sua vida, e muitas vezes trabalhou sem qualquer remuneração.
Há um concerto de Vivaldi com uma formação surpreendente!
O que me dizem da seguinte combinação: duas flautas doces, dois “chalumeaus”, dois violinos “in tromba marina”, dois bandolins, duas teorbas e um violoncelo?
Vale a pena nos atermos um pouco a ela.
Começamos
com duas flautas doces – instrumentos bastante conhecidos. Mas em
seguida temos dois chalumeaus, e eu estou certo que pouca gente já
ouviu falar deles. O chalumeau foi um instrumento que esteve em voga
entre 1700 e 1750, sendo então substituído pelo clarinete. É
portanto considerado um ancestral deste instrumento.
Temos também dois violinos “in tromba marina”. Sabemos que a “Tromba Marina era um instrumento de cordas muito peculiar, bastante conhecido na idade média. Tinha uma coluna de madeira de cerca de 2 metros, com uma única corda.
Pois bem, o que seriam os violinos “in tromba marina”?
O encarte de um CD do seríssimo conjunto “The english Concert”, diz que se trata de um enigma!
Temos ainda dois bandolins, um violoncello e duas teorbas. Estas são pouco conhecidas. A Teorba é um instrumento criado na Itália no século XVI, e se assemelha ao alaúde, sendo maior e portanto mais grave.
Esse concerto é simplesmente sensacional! Tem que ser ouvido!
Está aqui:
Em
se tratando de combinação de muitos instrumentos, não podemos
deixar de nos lembrar dos concertos de Brandenburgo…
Nos 6 concertos de Brandenburgo, J. S. Bach também explorou as combinações instrumentais com muita riqueza.
Um exemplo: o Concerto de Brandenburgo no. 2.
Nele há quatro solistas com potências sonoras muito diferentes: trompete, que é muito potente, oboé, que tem potência mediana, violino que é ainda menos potente, e flauta doce, que é o menos potente de todos.
Equilibrar
esses quatro instrumentos, de modo que todos possam ser perfeitamente
ouvidos é muito difícil, mas Bach o fez com muita maestria.
Confira:
Espero que você tenha gostado desta “Festa de Timbres do Barroco”!
DICA DE LEITURA:
Concerto Barroco, de Alejo Carpentier.
Atenção:este não é um livro de históra da música. Não oferece informações 100% verídicas sobre a música barroca. Trata-se de um magistral livro de ficção, escrito por um gênio da literatura latino-americana, e ao mesmo tempo amante da música: o cubano Alejo Carpentier (1904-1980)
Eis a sipnose:
Em inícios do século XVIII, um milionário da prata mexicana, neto de umconquistador maltrapilho, aristocrata há uma geração apenas, deixa a terra natal para uma temporada de luxos e prazeres em Veneza. Chegando à cidade em pleno Carnaval, o Amo e seu criado Filomeno serão protagonistas de um concerto sem igual, que reunirá os maiores prodígios da Europa barroca, mas também a música do Velho e do Novo Mundo. O livro de Carpentier nos leva de uma Cidade do México que imita em prata lavrada todas as manias metropolitanas de uma Veneza em que, depois de muita peripécia erótica e musical, o Amo transformado em libretista do padre Antonio Vivaldi tentará levar à cena uma versão fiel e operística da conquista do México. A tarefa, está claro, é impossível, mas o fracasso não resulta em impasse. Numa virada final – anacrônica e fabulosa, barroca e moderna ao mesmo tempo -, caberá a Filomeno tomar a batuta e transplantar sua própria versão do barroco de volta à América – e de volta ao século XX.
Alejo Carpentier chegou ao ápice de sua arte narrativa e musical nesta breve obra-prima de 1974, que o autor chamou de “suma teológica” de sua carreira e que o leitor brasileiro agora pode ler na primorosa tradução de Josely Vianna Baptista.
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