Valsa Vienense

Viena é uma cidade que nasceu como um assentamento celta; e que foi posteriormente dominada pelos Romanos, que estabeleceram ali uma base militar; que se tornou um ducado na alta idade média; e em 1278 tornou-se parte dos domínios dos Habsburgo, expandindo-se e transformando-se finalmente na capital do vasto império austro-húngaro.

Quero contar a vocês um pouco da história dessa cidade, e de como ela se tornou o maior centro musical europeu dos séculos XVIII e XIX.

As informações mais antigas sobre alguma atividade musical importante em Viena nos levam ao século XIII, mais especificamente entre os anos de 1177 e 1246. Durante esse período, em que esteve sob o domínio dos Duques de Babenberg, Viena foi um ponto de encontro de menestréis.

Menestréis e Minnesingers

A palavra menestrel é francesa e se refere a músicos medievais que em geral cantavam acompanhados por um instrumento como o alaúde. Muitos circulavam pela Europa, entretendo os habitantes das cortes com suas canções. Entretenimento era o objetivo principal; além de cantar e tocar, muitos menestréis eram também malabaristas e acrobatas.

Nos países germânicos surgiu uma variante dos menestréis, os minnesingers. Diferentes dos menestréis, que eram pessoas do povo, os minnesingers eram pessoas de origem aristocrática, estabelecidos em alguma corte e que cantavam quase que exclusivamente canções de amor. O foco, portanto, estava mais na música que nos malabares ou nas acrobacias. Abaixo um exemplo de minnesinger, ou menestrel germânico.

Reinmar, der Alte: Der Ostertag – Jochen Faulhammer und Musiktheater Dingo

Viena foi, nos séculos XII e XIII, um importante centro de menestréis. Um fato interessante é que menestréis itinerantes, aqueles que viajavam de corte em corte, não costumam ter direitos legais em nenhuma parte. Mas naquela jovem Viena, muitos menestréis eram de origem aristocrática, e, portanto, não eram viajantes: por isso gozavam de todos os direitos legais.

Isso fazia de certa forma com que sua música fosse considerada mais que um simples entretenimento. Algumas de suas canções tiveram seus manuscritos conservados até hoje. Tudo isso já aponta para um cuidado e interesse um tanto especiais para com a arte musical, o que já prenunciava o grande centro musical que Viena viria a ser.

Estética Musical

O arquiduque Ferdinando em sua juventude

No início da era barroca, a musica de Viena tem um novo e importante impulso; com a ascensão do arquiduque Ferdinando II, em 1619, os ideais musicais do barroco foram aceitos, e a cidade se estabeleceu como importante centro musical. Quando falo nos ideais musicais do barroco estou falando na música desenvolvida pelos artistas e aristocratas de Florença, no final do século XVI.

Ao tentarem fazer uma volta ao Teatro da Grécia antiga, acabaram por criar o mais magnético gênero musical de todos os tempos: a ópera. E foi nessa época que Viena iniciou uma importante ligação com a Itália. Por cerca de 200 anos Viena abriu as portas para um expressivo número de músicos Italianos que trouxeram o que havia de mais moderno na estética musical da época.

Em 1622, o Arquiduque Ferdinando II casou-se com a nobre italiana Eleonora Gonzaga, e isso impulsionou ainda mais a vida musical e cultural da cidade. O principal impulso veio das ligações estabelecidas com ninguém menos que Claudio Monteverdi, a mais importante figura musical do recém-criado barroco italiano. 

Vários artistas que atuaram nas primeiras montagens das óperas de Monteverdi se deslocaram para Viena, participando das montagens levadas a cabo lá. A partir de então, montagens operísticas se tornaram frequentes.

Itália e Alemanha

Foram também os músicos italianos que introduziram em Viena a música instrumental, como um gênero independente. Mas a essa altura, já havia compositores austríacos que, baseados em tudo que haviam aprendido com os mestres italianos, começaram a desenvolver um estilo de música instrumental propriamente austríaco. Um deles foi Johann Schmelzer, que viveu entre 1630 e 1680.

Outro fato a ser observado foi o crescente número de óperas compostas para serem cantadas em alemão, e até mesmo o surgimento, já no século XVIII, de um teatro exclusivo para elas. Vejam um exemplo interessante: Wolfgang Amadeus Mozart escreveu a maioria de suas óperas em italiano. Ele tinha de fazer isso se quisesse conquistar alguma posição entre os compositores de ópera italianos.

Mozart compôs portanto várias óperas italianas: Bodas de Fígaro, Cosi fan Tutte, Don Giovanni,… mas também estava engajado na criação de uma ópera genuinamente germânica. Exemplos de óperas cantadas em Alemão são O Rapto do Serralho e a mais conhecida de todas… A Flauta Mágica.

A Flauta Magica; Aria da Rainha da Noite – Diana Damrau, The Royal Opera

Salieri

Mas mesmo com a evolução de um estilo próprio, Viena continuava não abrindo mão dos compositores italianos. Quem viu o filme Amadeus talvez se lembre de uma cena em que Mozart, ainda jovem, tem de enfrentar os velhos italianos, que eram as verdadeiras autoridades musicais da corte.

Essa é uma das verdades históricas que encontramos naquele filme. Sim, porque lá há também algumas mentiras, como o fato de Salieri ser tratado como um compositor de 10ª categoria – coisa que ele nunca foi. Salieri foi, aliás, um dos últimos compositores italianos a ter uma importante e longa atuação na corte vienense. Quando morreu, em 1825, Beethoven já havia composto suas 9 sinfonias. Viena já havia consolidado seu próprio estilo musical – mais ainda, já havia colaborado imensamente para a consolidação de um estilo musical germânico.

“A Primeira Escola de Viena”

Um quarteto de cordas tocando em casa no seculo XVIII

Na virada do século XVIII para XIX Viena abrigou os três maiores compositores daquela época: Mozart, Haydn e Beethoven. Esses três compositores formam o que muitos chamam atualmente de “A Primeira Escola de Viena”. Não que eles tivessem tomado parte de uma escola de música formal. Cada um teve uma trajetória própria, e a referência a eles como formadores de uma escola é acima de tudo um título honorífico que chama a atenção para a consolidação de um estilo que vinha sendo preparado há décadas: o estilo clássico, que muita gente chama de “Classicismo Vienense”.  É o apogeu de uma longa evolução, quando se alcança finalmente o máximo da música instrumental pura, aquela que não está a serviço nem do canto, nem da dança, nem da literatura, nem da religião. Música pura, música abstrata, música para servir unicamente à fruição estética.

Depois de muito séculos de investigação acústica e estética, coube a Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert chegarem finalmente à mais alta evolução da linguagem musical, permitindo o surgimento da música pura, abstrata. Com a morte desses compositores, encerrava-se uma era e Viena perde a sua hegemonia musical para muitas cidades alemãs. Por certo ela continuava com uma intensa atividade musical, em todas as variantes: ópera, ballet, música de câmara, música sinfônica.

Contudo, os novos caminhos estéticos são apontados agora por artistas que não têm vinculação direta com Viena, como Liszt e Wagner. Mas em 1862, quando Johannes Brahms, então com 29 anos, muda-se para Viena, uma nova era começa a surgir.

Em Contramão

Liszt e Wagner propunham um caminho de certa forma contrário àquele trilhado pelos clássicos vienenses. Liszt criara o poema sinfônico, em que a música era gerada a partir de uma obra literária, e Wagner defendia a obra de arte total, em que música, literatura e drama se fundiam. Coisas muito diferentes da música pura conseguida pelos clássicos.

Brahms, porém, surge para embaralhar as coisas. Embora sua natureza fosse essencialmente romântica, Brahms sustentava as formas e gêneros musicais desenvolvidos pelos clássicos: a sonata, a sinfonia, a música de câmara. Nem sequer tentou escrever uma ópera – o que talvez o aproximasse de Wagner, e exceto por esse gênero, foi um mestre em todos outros.

A transcendência estética que Brahms consegue é algo absolutamente inexplicável. É música pura, abstrata, mas que vem com uma carga emocional e uma possibilidade de introspecção jamais imaginada por nenhum clássico.

Poderíamos escolher qualquer uma de suas peças para exemplificar isso que eu disse. Mas como devo eleger uma, ficaremos com o 4º movimento de sua Sinfonia nº 4, em mi menor.

Brahms, Sinfonia no. 4, 4o. movimento.

O 4º movimento da 4ª sinfonia de Johannes Brahms une uma estrutura musical muito antiga, a passacalha, a uma das mais transcendentais experiências estéticas que se pode esperar de uma obra musical. Por isso Brahms é considerado aquele que que levou ainda mais longe as experiências do Classicismo Vienense.

Mas  temos então um fato curioso. Este compositor, cuja música é quase sempre austera e altamente introspectiva declarou uma vez que invejava a simplicidade e espontaneidade musicais de ninguém menos que… Johann Strauss filho.

Strauss

Johann Strauss e Johannes Brahms fotografados em Viena

Eu comecei contando brevemente que Viena foi um assentamento celta, base militar romana, transformando-se num pequeno ducado na idade média que evoluiu até capital do poderoso império austro-húngaro. Faltou dizer com a 1ª Guerra Mundial o império Austro-húngaro teve seu fim, e com ele a era de brilho e glamour vienense. A música de Johann Strauss representa o brilho e prosperidade da fase final desse império.

Strauss foi capaz de escrever uma música cheia de charme, elegância e sofisticação que embora seja hoje considerada por muita gente como superficial e alienada, foi invejada pelo próprio Brahms, que dizia: queria eu ser capaz de escrever música assim:

Contos Dos Bosques de Viena

Depois de séculos de pesquisa, a humanidade chegou à música pura da mais alta qualidade e transcendência. Isso coube a Haydn, Mozart, Schubert, Beethoven e Brahms, todos eles compositores que viveram em Viena. Mas Viena, no fim de sua trajetória imperial, também gerou um Johann Strauss, que de certa forma levou a cidade à origem de seus menestréis, que tinham como objetivo principal entreter as pessoas.

As valsas de Strauss foram grande entretenimento. Mas como acontece com os grandes clássicos, recusam-se a cair de moda. Talvez seja essa o grande ensinamento da história musical Vienense: a música é uma arte de múltiplas facetas… entreter, transcender, pura ou misturada… sempre vale a pena estar com ela.

Espero que tenha gostado deste post!

E aqui vai uma sugestão de leitura para que conheça mais sobre a história de Viena!

Clique na imagem acima, e você irá para o site da Amazon Brasil, onde poderá ter mais informações.

Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!

Saudações Musicais!

Siga-nos! Dê seu like! Compartilhe! E Obrigado!!!
error
fb-share-icon

5 comentários em “Valsa Vienense”

  1. Bravo novamente Maestro! Magnífico texto! Sou um apaixonado pela música antiga, desde o medieval até o barroco, rococó …. meu pai ( que dizia não ter ouvido para distinguir um bumbo de um bombardino rsrs) facilitou muito essa paixão. Lembro dele cantando pra mim, criança, uma versão de Rameau cuja letra era “tamborzinho alegre rufa rufa, toca toca, rufa rufa meu tambor” rs … a melodia, lógico era Tambourin … depois, mais tarde me apresentou os discos do grupo “Musikantiga” e os clássicos vários … indo do medieval até Debussy, Wagner, Villa-Lobos, Stravinsky …. esse seutêxto me fez viajar por essas memórias. Grato Maestro!

  2. Muitíssimo interessante o aspecto histórico de Viena e sua ascensão como centro musical e cultural. Confesso que fiquei esperando algo mais sobre a Valsa em si, uma vez que é o tema do post. De qualquer modo, claro e divertido como sempre. Obrigado, Maestro

  3. São tantas informações e conceitos que às vezes fico com medo de perder meu apreço naif pela música, levado apenas pelo estado de espírito ao ouvir. Reconheço, no entanto, seu esforço para nos tirar deste estado dormente e vivenciar para gostar ainda mais da evolução da música. Parabéns e muito obrigado pelo seu trabalho.

  4. Mais uma vez, agradecimentos pelo conhecimento que nos passa e, também, pelas escolhas dos trechos musicais e livros sugeridos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *