Evolução Instrumental

Jan Brueghel I & Peter Paul Rubens – Hearing 

Hoje vamos falar um pouco sobre a evolução instrumental na música ocidental. Não é um assunto simples. Antes de se definirem instrumentos com os quais estamos habituados – como violinos, oboés, flautas transversais, trombones – centenas de outros nasceram, se desenvolveram e foram abandonados.

É assunto para um curso universitário. Ao mesmo tempo que é complexo, é fascinante. Vamos então hoje, saber um pouco a respeito.

Sabemos que na evolução da música europeia, a música vocal foi aquela que se desenvolveu primeiro. Havia instrumentos, é claro, mas a maior parte deles era bastante limitada, assim como era também limitada a técnica dos instrumentistas.

Com isso eu quero dizer que eles produziam poucas notas, e apresentavam muitas limitações em relação à intensidade sonora, afinação, timbres, etc.

Assim, esses instrumentos serviam principalmente para acompanhar cantos e danças populares. Aos poucos foram evoluindo, até que passaram a ser usados para acompanhar obras vocais mais sérias.

À medida que evoluíam, passaram a ser utilizados autonomamente, em danças de corte, e finalmente chegaram a ser usados na execução de obras totalmente instrumentais para serem ouvidas, e não dançadas.

Polorum Regina

Vamos acompanhar essa evolução instrumental, e começamos com uma antiga canção popular espanhola, uma melodia bonita porém simples, que é repetida várias vezes. Notem como nela os instrumentos têm um papel muito discreto, apenas de apoio. Temos um instrumento de sopro e um de corda que fazem uma única nota longa, um outro que toca a melodia, para auxiliar canto; e fora isso, temos alguma percussão pontuando aqui e ali.

Polorum Regina

Duzentos anos mais tarde, no século XVI, muitos instrumentos já haviam evoluído consideravelmente.

Passaram então a ter um papel bem mais importante, acompanhando obras vocais mais sofisticadas – às vezes quase que roubando a cena e ofuscando as vozes.

Wer daz Elend bauen wil

Vamos ouvir um exemplo, Wer daz Elend bauen wil – “Onde a pobreza construirá” – uma antiga canção do século XVI, entoada pelos peregrinos de Santiago de Compostela, de autoria do compositor Jobst vom Brandt.

Wer daz elend bauen wil (I)

Aqui temos um uso bem mais sofisticado dos instrumentos. Como eu disse agora há pouco, nesse exemplo eles quase roubam a cena, atraindo para si muito do interesse do ouvinte.

Havia, portanto, uma evolução instrumental paralela à música vocal. E essa evolução se deveu muito à dança. Se a música vocal evoluiu no ambiente religioso, foi no ambiente das cortes, graças a dança, que a música instrumental pode se desenvolver.

Naquela época a educação dos jovens de famílias poderosas não tinha muito a ver com os livros. Poucos sabiam ler ou escrever. Num mundo onde a ameaça de guerra era constante, o jovem aprendia a cavalgar, a esgrimar, a fazer suas próprias armas; mas também se preparava para os tempos de paz, aprendendo a cantar, tocar um instrumento e dançar.

Nesse mundo em que não havia televisão, internet, e mesmo um livro era algo raro, as festas e os bailes eram duas das poucas atividades de lazer possíveis. E aliás, nem eram puro lazer: nos bailes os nobres faziam alianças, e isso incluía até mesmo arranjar casamentos para seus herdeiros. A importância da dança era então muito maior do que imaginamos.

Orchesographie

Orchesographie

Tudo isso está registrado num documento histórico essencial para entendermos a evolução instrumental da música europeia. É um livro chamado Orchesographie, de 1589, escrito por um padre francês chamado Jean Tabourot. O livro contém alguns muitos trechos de partituras musicais da época, mas sobretudo é um tratado de dança. Por meio desse livro, os jovens cortesãos aprenderam a dançar.

Peter Warlock, um compositor inglês que viveu entre 1894 e 1930, fez uma suíte para cordas baseada em algumas danças do livro de Tabourot.

[NYCP] Warlock – Capriol Suite

Warlock, porém, escreveu-as para uma orquestra de cordas moderna. Ouvimos, portanto, uma sonoridade muito diferente da que se ouvia séculos atrás.

Ballet Des Coqs

Como será então que soavam essas danças quando tocadas à época?

Para termos uma ideia, devemos recorrer a um dos grupos que pesquisam seriamente os instrumentos de cada século. É isso que faremos em seguida. Vamos constatar a diferença ouvindo o conjunto sueco Westra Aros Pijpare.

Ballet – Michael Praetorius – Westra Aros Pijpare

Essa foi a peça Ballet Des Coqs, ou balé dos galos, executada pelo conjunto sueco Westra Aros Pijpare, com instrumentos típicos do século XVI: além dos violinos e violoncelos de época – bem diferentes dos de hoje – eles tocam o violone, que é uma viola da gamba grave, a viola da gamba tenor, não tão grave, o alaúde, a teorba , que é um alaúde grave, uma pequena harpa, muito menor que a moderna, um cornetto, flautas doces e transversais, crumhorns – que são instrumentos de sopro ancestrais do fagote – sacabuchas – ancestrais dos trombones – e um grande número de instrumentos de percussão.

Uma coisa muito interessante é que naquela época, ao contrário de hoje, o compositor escrevia apenas as notas musicais, sem dizer quais instrumentos deveriam tocá-las. Cabia aos próprios músicos decidir quais instrumentos utilizar e quando.

A produção de música para as festas e bailes em castelos e palácios era, portanto, muito grande naquele tempo. Em muitas cortes havia compositores residentes que se dedicavam a escrever essas danças, e muitas dessas partituras circulavam pela Europa.

Haveria de chegar um momento em que alguém faria um trabalho decisivo para o desenvolvimento da música instrumental da época; alguém que faria um registro global, um grande volume com todas essas partituras. Esse alguém foi um músico chamado Michael Praetorius.

Terpsichore

Praetorius, além de compositor, foi um prolífico teórico, que escreveu vários volumes abordando diferentes aspectos da música de seu tempo; comentários sobre a música religiosa, um extenso tratado sobre os instrumentos musicais, com muitas ilustrações, e uma coletânea de 312 danças francesas em voga. Esse livro ganhou o nome de Terpsichore, palavra que vem do grego e significa divertir-se com as danças.

O Terpsichore é uma das maiores fontes de estudo para compreendermos a música de dança daquele tempo. Foi tocando esse tipo de música que os instrumentos musicais foram se desenvolvendo, bem como sua técnica.

Quando ouvimos uma obra para orquestra de J. S. Bach, como uma de suas suítes ou um de seus magníficos concertos de Brandemburgo, podemos pensar: mas de onde veio essa música, essa sonoridade orquestral; quais foram as bases de Bach?

Pois uma boa parte dessa base ficou registrada por Praetorius em seu Terpsichore. Além de documento histórico, as partituras contidas nesta obra vão muito além da importância histórica e dão até hoje prazer aos ouvintes.

Praetorius – Ballet du Roy

Como eu disse há pouco, essas danças medievais e renascentistas foram a base da evolução instrumental na música erudita europeia. Graças a elas obras primas puramente instrumentais puderam ser escritas nos séculos seguintes.

Concerto de Brandemburgo nº 1

Um maravilhoso exemplo é o concerto de Brandemburgo nº 1, de Johann Sebastian Bach. Dos seis concertos dessa coleção, este nº 1 é o que tem a mais rica instrumentação, o que nos remete imediatamente a essas antigas danças que eram tocadas com tanta riqueza de timbres.

J.S. Bach: Brandenburg Concerto No. 1 in F Major, BWV. 1046 – I. Allegro

Das peças orquestrais de todo o período barroco, é uma das que apresenta uma maior riqueza de timbres, variedade temática, alterando trechos líricos e de dança, valendo-se ainda do mais refinado tratamento harmônico. Uma das mais sofisticadas obras orquestrais de seu tempo.

Neste texto eu procurei mostrar a vocês que a excelência da música instrumental ocidental veio de uma música muito mais simples, mas que até hoje não perdeu seu encanto: a música de dança da renascença e alta idade média.

Na evolução da música chamada de erudita, mesmo os maiores gênios fizeram música que veio de outra música. Nada surgiu por acaso.

Compreender essa linha evolutiva, e a importância da tradição na música de concerto é algo verdadeiramente encantador.

Espero que tenha gostado deste post sobre a evolução instrumental!

E aqui vai uma dica de leitura para que conheça mais sobre os instrumentos musicais!

Clique na imagem acima, e você irá para o site da Amazon Brasil, onde poderá ter mais informações.

Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!

Saudações Musicais!

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17 comentários em “Evolução Instrumental”

  1. Muito me agradou sua linha do tempo na evolução musical. Facetas novas, ideias diferentes para mim. Obrigado e parabéns pelo seu trabalho.

  2. Maestro, adorei. Realmente viajei pela idade média ouvindo as músicas e pude apreciar os rudimentares instrumentos e como evoluíram. Foi de grande valia o que aprendi. Muito obrigada.

  3. Maravilhosa matéria Mto Gakdino, agradecemos sua disponibilidade de nos ofertar lindo e precioso conteúdo cultural. Deus lhe abençoe e continue nos abençoando com lindas e importantes informações. Obrigado.

    1. Obrigado pelas informações, Maestro!
      Sua didática nos fascina, e faz que nosso interesse por temas musicais cresça resoluta e sabiamente.

  4. Que texto maravilhoso! Explica, de forma clara, objetiva e muito bem construída a história dos instrumentos. Já torço por uma parte 2, onde sejam abordados outros instrumentos, quem sabe…

    1. Olá Sofia, que bom que gostou, muito obrigado!

      Boa idéia, vou pensar em uma postagem sobre outros instrumentos.

      Apareça sempre, toda semana tem postagem nova no site.

      Um abraço musical!

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