Sonata Bitemática

The Lute Player – detalhe (Caravaggio)

Hoje vamos conhecer uma das mais complexas estruturas da música erudita europeia: a sonata bitemática. E como sempre, vou tentar explicá-la a vocês com um mínimo de termos técnicos, e de uma maneira que todo mundo possa entender; principalmente quem nunca estudou música.

Deixemos de lado a palavra sonata e nos concentremos da palavra bitemática. É fácil deduzir: uma sonata bitemática é aquela que tem dois temas. Muita gente pode pensar: mas e daí? O que isso tem de excepcional?

É, pode parecer simples, mas não é. Durante muito tempo foram criadas peças musicais com dois temas, ou até com mais de dois; mas não do jeito que veremos hoje.

Como eu costumo dizer, para conhecermos bem uma coisa, ajuda muito conhecer o contrário. Então, antes de abordar a tal sonata bitemática, vamos passear brevemente por outras formas e gêneros musicais bem diferentes.

Música Vocal

Na música vocal, por exemplo, os compositores procuraram sempre reforçar o texto que seria cantado. Esta era a preocupação fundamental.

Vejamos alguns exemplos de música vocal. O primeiro é o Stabat Mater, um texto religioso em latim que descreve o sofrimento de Maria ao pé da cruz em que Cristo estava crucificado. A música ilustra perfeitamente o seu sofrimento.

Stabat Mater – Dolorosa – G.B Pergolesi

Agora um exemplo muito diferente do anterior. Na ópera Dido e Eneas, de Henry Purcell, há um momento em que as bruxas se encontram e traçam planos diabólicos. A música não poderia ser mais adequada.

Dido and Aeneas, Z. 626, Act II: Prelude for the Witches. “Wayward Sisters, You That Fright”

Esses dois exemplos, um de música sacra e outro de ópera, mostram como na música vocal a principal preocupação do compositor é criar música que retrate fielmente o texto em questão.

Música Instrumental

Mas quando se trata de música puramente instrumental, a tarefa do compositor muda de figura, pois não há mais texto para ser cantado. Ou melhor, pode haver um subtexto, uma história que inspire o compositor.

É o caso da célebre primavera de Vivaldi. No 1º movimento, Vivaldi usou 4 temas: a melodia principal, conhecidíssima, que representa a alegria pela chegada da primavera; um segundo tema que descreve explicitamente os cantos dos pássaros; um terceiro tema que simboliza o murmurar de um riacho – que estava congelado e agora corre livremente; e finalmente um quarto tema, que descreve uma tempestade.

Vivaldi – Spring 1st Movement – The Four Seasons

Trata-se de um exemplo de música puramente instrumental, em que vários temas são organizados, um após o outro. Essa é uma maneira de compor música.

Apenas um Tema

Mas existe uma outra, em que o compositor, em vez de dispor de vários temas, prefere impor-se uma limitação: ele usa apenas um tema, e procura variar ou desenvolver esse tema de várias maneiras. Partindo dessa limitação, ele precisa usar com mais empenho sua criatividade – e esse é um grande desafio para o compositor.

Vamos ouvir um exemplo: um dos movimentos, a Polonaise, da Suíte Orquestral nº 2 de Johann Sebastian Bach. Se você prestar atenção, verá que este tema será desenvolvido e variado, mas nenhum outro tema surgirá nos 3 minutos e meio que essa peça dura. Vamos lá!

J.S. Bach: Orchestral Suite No. 2 in B Minor, BWV 1067 – V. Polonaise

Temos então na música instrumental basicamente essas duas possibilidades de construção: uma baseada mais na criação pura, em que vários temas são criados e organizados em sequência; outra baseada mais na manipulação dos temas, ou seja, em que um tema apenas é CRIADO, mas ele é desenvolvido e variado.

Dois Temas

Então houve um momento em que surgiu a ideia de se usar dois temas em vez de um. Afinal, no processo de desenvolvimento e variação, esses temas poderiam interagir, resultando em possibilidades muito mais ricas de construção musical. Essa ideia foi um verdadeiro boom na composição musical.

A obra calcada no desenvolvimento e variação de dois temas que interagem passou a ser chamada de forma-sonata bitemática, e foi uma das mais importantes características do estilo clássico, que sucedeu o barroco.

Normalmente a forma-sonata bitemática se organiza assim: Ouve-se o 1º tema, e depois o 2º tema; esse trecho é a exposição dos temas.

Em seguida temos o desenvolvimento desses temas. Aqui, nenhum tema ou melodia nova surgem. Tudo é feito baseado apenas nos temas ouvidos na exposição. Nenhuma nova ideia musical deve ser introduzida aqui. Essa é uma regra de ouro da forma sonata bitemática.

Após o desenvolvimento ouvimos novamente o 1º e o 2º temas. É a reexposição, que finaliza a peça.

Sonata KV 545

Mozart – Piano Sonata No. 16 in C Major, K.545 (1st Mvt)

Agora tomemos um minuto para elucidar um pouco a terminologia. Essa obra de Mozart, a sonata KV 545, tem três movimentos; e apenas o 1º é construído sobre dois temas. O 2º e o 3º movimentos são monotemáticos. O 2º tem o caráter de canção, e o 3º tem o caráter de dança. O 1º não: ele não tem nem caráter de dança, nem de canção; ele está mais para um discurso, uma narrativa, e com a diferença de ser bitemático.

Durante todo o período conhecido como classicismo e até durante o romantismo, quase todos os 1ºs movimentos de sonatas para piano, para violino e piano, violoncelo e piano, quartetos, trios, quintetos etc, eram escritos em forma-sonatas bitemática. E o mesmo acontecia com os 1ºs movimentos das sinfonias.

Quinta Sinfonia

Quinta Sinfonia – 1º movimento – Beethoven, com a Bachiana Filarmônica e o maestro João Carlos Martins

Esse tema – o pam-pam-pam-pam – todo mundo conhece. Se perguntarmos, qualquer um responderá: esse é o tema do 1º mov da 5ª de Beethoven. Só que o que quase ninguém se dá conta é que esse não é “o” tema, mas o primeiro tema do 1º movimento desta sinfonia.

Pois é, o 1º movimento da 5ª sinfonia de Beethoven também é tem forma sonata bitemática, e é um dos mais claros exemplos que podemos ter dessa forma. E evidentemente, em se tratando de Beethoven, temos uma forma sonata bitemática bastante estendida, ampliada. Mas por mais ampliada que seja, a regra de ouro nunca é violada: os desenvolvimentos são feitos apenas sobre os dois temas; eles são toda a matéria prima de que o compositor dispõe.

Ele propositadamente limita esta matéria prima para desafiar sua criatividade a produzir os mais elaborados desenvolvimentos.

Análise

Vamos analisar esse 1º movimento mais detalhadamente. Ele começa com a apresentação do 1º tema. Após apresentar o 1º tema, ele não vai logo para o 2º. Antes disso ele já faz um pequeno desenvolvimento deste 1º tema. Então Beethoven nos apresenta o 2º tema, muito curto e simples. Dica: ele começa aos 1’05” do vídeo acima.

Ele desenvolve este 2º tema rapidamente, para então voltar ao 1º tema e fazer o fechamento da 1ª parte da peça- lembram-se do nome? É a exposição! Agora sim, começa o desenvolvimento pra valer. E só são usados os elementos dos apresentados na exposição. Feito o desenvolvimento, vamos à reexposição.

E procurem prestar atenção: em um determinado momento, vocês vão ter a impressão de que a reexposição está terminando. Mas Beethoven nos engana: retoma o fôlego, desenvolve os temas mais um pouco, indo finalmente ao final da obra.

Clareza

Essa foi uma pequena análise do 1º movimento da 5ª sinfonia de Beethoven, um dos mais claros exemplos de forma sonata bitemática que existem. Essa clareza resulta da simplicidade dos temas, e principalmente do grande contraste entre eles. Quando mais simples e mais contrastantes, mais claro será também o desenvolvimento. E mais fácil será para nós ouvintes memorizarmos esses temas para depois acompanharmos o que acontece com eles no desenvolvimento.

Os Três maiores mestres da forma sonata bitemática foram Mozart, Haydn e Beethoven. Só não posso terminar sem antes dizer que conhecer forma musical pode ser muito interessante para quem gosta de se aprofundar nos mistérios da composição musical. Mas você NÃO precisa disso para se deliciar com boa música.

Espero que tenha gostado deste post.

E aqui vai uma dica de CD da obra Dido e Eneas que apresentei neste post!

É uma obra prima, uma ópera completa que dura apens 50 minutos.

Excelente para se iniciar no mundo da ópera!

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Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!

Saudações Musicais!

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Um comentário em “Sonata Bitemática”

  1. Maestro Galindo
    Mais uma vez nos surpreendendo com a música clássica e suas diversidades, sempre bem vinda e apreciável.

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