Será que você é uma daquelas pessoas que imagina que os músicos são seres abençoados, e que entre eles reina sempre a mais perfeita harmonia? Se é, lamento dizer que isso tudo é uma grande ilusão. Sempre houve muitas rivalidades musicais, algumas lamentáveis, e outras nem tanto, pois resultaram em grandes avanços estéticos. Vamos falar um pouco sobre isso hoje.
Prima Pratica e Seconda Pratica
Uma das rivalidades musicais que ficou para a História aconteceu entre dois músicos italianos que viveram na virada do século XVI para XVII. Um deles se chamava Giovanni Artusi e o outro Claudio Monteverdi.
Vou me restringir ao cerne da questão. Entre os anos de 1600 e 1603, Artusi atacou veementemente a música de Monteverdi, que segundo ele era rústica e desobedecia às consagradas regras de composição.
Monteverdi respondeu brilhantemente em 1605, propondo que havia uma divisão na criação musical: a “Prima Pratica” e a “Seconda Pratica”.
Prima Prática era a música defendida por Artusi, o magnífico estilo polifônico do século XVI, que teve como um dos maiores expoentes Giovanni Perluigi da Palestrina.
Temos aqui um entrelaçamento perfeito de quatro vozes. Nesse tipo de música o uso de instrumentos era muitas vezes opcional, fornecendo apenas um discreto apoio.
Vamos a outro exemplo. Esta é uma peça puramente vocal, com cinco vozes entrelaçadas, sem qualquer instrumento musical.
Isto é, portanto, aquilo que Monteverdi chamou de “Prima Pratica” – ou Stile Antico.
A “Seconda Pratica” – ou Stile Moderno, era algo muito diferente. Em vez de um entrelaçamento perpétuo de vozes, havia apenas uma voz. Como consequência, o texto sobre o qual a música era feita podia ser, finalmente, entendido com perfeição.
E quanto aos instrumentos, continuavam servindo de apoio, mas dessa vez, um apoio imprescindível. O resultado? Algo completamente diferente. Ouça!
Recitativo e Aria
Caro leitor, essa Seconda Pratica, que como eu disse foi chamada também de Stile Moderno, pode parecer algo normal para nós, nos dias de hoje; mas foi naquela época o início de uma tremenda revolução musical. Não só musical, mas artística, pois ensejou o nascimento de um gênero que englobaria diversas artes: a ópera.
A voz única, cantando um texto que se tornava inteligível, unida ao desejo de se reviver o teatro grego, fez com que a música barroca se associasse à teatralidade e ao individualismo – características marcantes do povo italiano. Assim, esse novo gênero se tornou um sucesso irresistível por toda a Itália e igualmente fora dela.
Os compositores italianos de ópera logo definiram um padrão muito simples e eficaz: a dobradinha recitativo-aria. No recitativo, a fala se sobressai à melodia; na aria, ocorre o contrário. Assim, no recitativo a trama se desenrola, como no teatro, enquanto na aria as qualidades musicais se sobrepõem ao texto.
Vamos ouvir um exemplo de recitativo e aria bem curtos e simples, escritos por volta de 1670 pelo compositor Alessandro Stradella.
Primeiro o recitativo…
E agora, a aria…
Óperas
As óperas italianas desta época eram, portanto, construídas basicamente por essa dobradinha. O novo gênero foi ganhando toda a Europa até que uma grande rivalidade surgiu. A França, a orgulhosa e poderosa França do Rei Luis XIV, o Rei Sol, não recebeu bem a novidade italiana! Mais uma contenda para a lista de rivalidades musicais da música do século XVII! Assim, ela acabou por criar a sua própria ópera, em tudo diferente daquela.
A ópera francesa nasceu de um gênero mais antigo chamado Ballet de Cour – os grandes e bem organizados balés da corte de Luís XIV de modo que a dança viria a ter um papel importantíssimo no gênero.
Mas o mais importante é que não havia nela a clara distinção entre recitativo e aria. A maneira como a música se conduzia e se relacionava com o texto era completamente diferente.
Para entender, nada melhor que fazer uma comparação, caro leitor. Compare os dois trechos que ouvimos acima, recitativo e aria do italiano Stradella, com os trechos a seguir da ópera Armide, de Jean-Baptiste Lully.
Ouça com atenção e você constatará a profunda diferença de estilos entre eles.
Como você pode perceber, um longo trecho em que muita variedade, mas sem a divisão clara entre recitativo e aria típicos da ópera italiana.
Abertura Italiana
As aberturas das óperas italianas e francesas são outro caso a se observar no mundo das rivalidades musicais. São opostas em tudo: a abertura italiana é dividida em três partes, a 1ª rápida, a 2ª lenta e a 3ª novamente rápida. A francesa é o inverso: lento, rápido, lento.
Vamos começar ouvindo um exemplo de abertura italiana, de Alessandro Scarlatti, que foi um dos mais importantes compositores de ópera italiana do século XVII.
E em seguida, uma abertura de Antonio Vivaldi, da ópera Griselda. Observem a mesma forma – rápido-lento-rápido.
Como eu disse no início, a ópera italiana espalhou-se por diversos países europeus, e uma prova disso é a obra que ouviremos em seguida: a abertura da ópera La Spinalba – vejam, um título italiano- mas escrita por Francisco António de Almeida – um compositor barroco português. A execução é do conjunto Os Músicos do Tejo.
Abertura Francesa
E agora, depois de ouvir três aberturas em estilo italiano, eu tenho certeza de que você está com sua forma e espírito na memória. É hora de compará-los com os de uma abertura francesa, de Jean Baptiste Lully.
Como eu disse, a forma básica é o inverso da abertura italiana – lento-rápido-lento. Além disso, o trecho lento é sempre em ritmo de caráter processional – o que os músicos chamam de ritmo pontuado – e a sessão lenta é sempre em escrita polifônica ou contrapontística – as melodias entrelaçadas.
A abertura francesa fez um enorme sucesso em outros países, e muitos compositores não franceses a adotaram fielmente. Foi o caso de Händel, que era alemão radicado na Inglaterra. Todas as óperas e oratórios de Händel que eu conheço têm abertura em estilo francês.
Espero que tenha gostado deste post sobre as rivalidades musicais da música barroca!
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Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!
Saudações Musicais!
Brilhante, como sempre! Obrigada, maestro!
Prezado maestro, gostei muito mas restou-me uma dúvida: a prima pratica também faz parte do que hoje agrupamos e entendemos como madrigais? Parabéns pela postagem e obrigado.
Sim, Ari. Os madrigais são um gênero típico do universo da “Prima Pratica”.
Abraço!
Obrigada pela aula Maestro !
Realmente interessante conhecer estes detalhes da rivalidade e da estrutura das aberturas. Agora posso ter mais um elemento de observação para quando ouvir e apreciar uma peça.
Fantástico, Maestro! Como sempre, fascinante!!!!
Adorei! Como sempre conciso e preciso nas informações e nos exemplos. Uma extensão deliciosa da sua vinheta na radio Cultura, que ouço sempre com muito prazer.