O Poema Sinfônico

Durante os muitos séculos de evolução da música de concerto europeia, coexistiram duas grandes tendências: a primeira, procura usar a música para descrever coisas ou estados de espírito; a segunda, ao contrário, via a obra musical como algo abstrato, um grande jogo de sons em movimento.

Essas duas tendências raramente foram encaradas dogmaticamente, ou seja, a grande maioria dos compositores escreveu música a partir dos dois princípios. Um nunca excluiu o outro.

A ideia da música não abstrata levou ao surgimento no século XIX de um gênero musical de grande importância: o poema sinfônico.

Antes de falarmos do poema sinfônico, vamos conhecer algumas obras que já continham o seu embrião. E para isso vamos voltar ao tempo em que os instrumentos musicais já haviam alcançado um grande avanço técnico: o início do século XVII.

Naquela época os compositores se divertiam com as possibilidades imitativas dos instrumentos.

“Il Gardelino”

Vivaldi usou as flautas que podiam imitar os sons de pássaros, como num concerto chamado “Il Gardellino”.

William Bennett – il Gardellino – Vivaldi. Flöte.

Este é um exemplo de como é possível fazer os instrumentos imitarem explicitamente um som qualquer da natureza. Afinal, a flauta em sua região aguda tem mesmo um som semelhante ao de um pássaro.

O compositor pode usar esse som para tocar melodias com notas muito rápidas e repetidas, e com isso a semelhança com o trinado de um passarinho torna-se mesmo muito grande.

Heinrich Biber

Fiquemos um pouco mais no período barroco, com uma obra descritiva surpreendente: a suíte “Batalha” de Heinrich Biber.

Biber viveu entre 1644 e 1704, e foi considerado por muitos estudiosos como o mais importante compositor alemão antes de J. S. Bach.

Foi também um violinista virtuoso e compositor de grande imaginação, utilizando afinações inusuais para o violino e extraindo dele sons percutidos.

Vamos então à Suíte “Battallia” de Biber, escrita para um conjunto de 10 instrumentos de cordas.

“Battallia”

1º movimento: toques de clarins e tambores que conclamam todos à guerra.

2º movimento é intitulado “a torpe sociedade do humor comum”.

O próprio autor escreve: “aqui a música é dissonante, pois várias canções diferentes são cantadas ao mesmo tempo por soldados , como um bando de mosqueteiros bêbados berrando”.

Os mosqueteiros aqui não têm nada a ver com a visão romântica de nobres guerreiros leais ao rei.

Ao contrário, são mercenários de comportamento reprovável, vindos de várias partes da Europa, cada um cantando em sua própria língua.

No próximo movimento, as notas curtas que compõem o tema procuram descrever as estocadas de esgrimistas, não em situação de batalha, mas provavelmente em treinamento. Há ordem, e não a desordem do movimento anterior.

O 4º movimento, intitulado “A Marcha”, utiliza o contrabaixo imitando o tambor militar e o violino imitando o flautim, instrumentos típicos das marchas militares.

O 5º movimento tem um ritmo típico de galope, procurando descrever uma cavalgada. Esse ritmo serve de base para um tema que nos sugere o toque de clarim do primeiro movimento.

No 6º movimento a alegria e animação dos movimentos anteriores começa a se esvair. É a angústia que precede a batalha…

No 7º movimento, finalmente, a batalha acontece. Biber escreve na parte dos contrabaixos: “a batalha não deve ser tocada com o arco, mas com os dedos da mão direita, estalando as cordas como tiros de canhão”.

No 8º movimento, que encerra a suíte, ouvimos os lamentos dos mosqueteiros feridos.

Heinrich Biber – Battalia à 10 (1673) Voices of Music.

Como essa obra, há muitíssimas outras que poderiam servir para ilustrar o conceito de música descritiva. Mas vamos deixar o barroco e seguir adiante no tempo.

“A Criação”

O período musical que se segue ao barroco é o classicismo, e nele os compositores chegaram a um grande refinamento na forma musical.

Foi justamente o momento supremo das tendências contrárias à música descritiva.

Apesar disso, podemos encontrar nesse período alguns exemplos surpreendentes desse gênero, como a introdução do grande oratório “A Criação”, de Joseph Haydn, à qual ele deu o título de “A Representação do Caos”.

Aqui, todas as normas de composição vigentes são contrariadas, para representar aquilo que teria antecedido a criação do universo. É a desordem, coisa impensável na arte do século XVIII.

Orquestra Sinfônica e Coro del Gran Teatre del Liceu.

Nem podemos chamar essa obra de descritiva; não há como descrever os sons do caos que precedeu a formação do universo.

Haydn se vale aqui do subjetivo, do conotativo, e obtém um resultado surpreendente.

Com Beethoven, que chegou a ser aluno de Haydn, chegamos mais próximos do poema sinfônico romântico.

“Egmont”

Muitas de suas obras podem ser consideradas genuínas precursoras do gênero, como as aberturas Leonora nº3, Coriolano ou Egmont. Vamos nos ater um pouco a essa última.

“Egmont” é o título de uma peça teatral escrita em 1788 por Johann von Goethe.

Na trama o Conde Egmont é um famoso guerreiro holandês, que luta contra a dominação exercida em seu país pelos espanhóis.

Ameaçado de prisão, Egmont recusa-se a fugir e a desistir do seu ideal de libertação. É preso, condenado à morte e executado, mas a mensagem final da obra é que mesmo com a morte de um herói o ideal de liberdade continua.

Beethoven escreveu música incidental para esta peça, e a abertura sobrevive até hoje como obra de concerto independente.

E é uma pena que muita gente ouça essa magnífica abertura em concertos, sem ter qualquer ideia dos muitos símbolos que ela encerra.

Símbolos encontrados na Abertura Egmont

Já de início percebemos o caráter trágico da obra.

E temos já um símbolo muito forte: o ritmo inicial é exatamente o da sarabanda, a dança espanhola que havia se tornado internacional durante o século XVIII. Uma nota longa, uma mais longa, uma curta e uma longa, como na Sarabanda de Bach.

Mas é uma sarabanda pesada, trágica, angustiada.

Após esse longo trecho em que Beethoven procura simbolizar a amargura e angústia do povo holandês submetido à tirania espanhola, acontece a morte de Egmont.

Temos duas notas descendentes que simbolizam o golpe da espada, silêncio e em seguida um coro fúnebre feito pelos instrumentos de sopro.

Segue-seentão o trecho final da obra, que é alegre e triunfante.

Essa alegria pode parecer paradoxal, mas trata-se do ideal de liberdade, que não morre, e até se fortalece após a morte do mártir.

Efetivamente, a morte de Egmont levantou o povo holandês, que finalmente se rebelou e livrou-se da dominação espanhola

OSEMBAP | Beethoven: Abertura Egmont op.84

Beethoven não chamou essa obra de Poema Sinfônico, e faleceu antes que o termo fosse criado. Mas sem dúvida já estava abrindo caminho para sua invenção, não só com essa, mas com outras obras.

O nome Poema Sinfônico foi criado por Franz Liszt. Liszt escreveu 12 deles, o primeiro em 1848, ou seja, cerca de 20 anos após a morte de Beethoven.

Seu poema sinfônico mais conhecido é o 3º da série, intitulado “Os Prelúdios”.

“Os Prelúdios”

Foi composto a partir de uma Ode do poeta francês Alphonse de Lamartine, que viveu entre 1790 e 1869.

Embora haja entre musicólogos muita discussão sobre até que ponto Liszt teria seguido realmente a obra de Lamartine, é certo que essa obra não é abstrata como uma sinfonia clássica.

A primeira edição da partitura incluiu um prefácio – que não foi escrito por Lamartine – mas que ilustra bem o enredo que Liszt desejou representar com sua música. Aliás, um prefácio que o próprio Liszt aprovou.

Ele diz:

“Que mais é a vida, senão uma série de prelúdios para aquele hino desconhecido, cuja primeira e solene nota é entoada pela Morte?

O amor é o admirável amanhecer de toda a existência;

Mas o destino pode fazer com que o deleite da felicidade seja interrompido por alguma tempestade, cujas mortais rajadas dissipam as ilusões.

E não vemos a alma cruelmente ferida, lançada fora de uma dessas tempestades, se esforçar para repousar suas memórias na calma serenidade da vida no campo?

Apesar de tudo, o homem dificilmente abandona-se por muito tempo ao prazer que pode desfrutar no seio da natureza.

Quando os trompetes soam o alarme, ele apressa-se para o local de perigo, seja qual for a guerra que a chama para assumir seu posto, a fim de finalmente recuperar no combate a completa consciência de si mesmo e de sua total energia.”

F.Liszt – Les Préludes (Poema Sinfonico No. 3).

Não preciso falar mais, caros leitores.

Vocês já perceberam que nesse gênero de música um som vale mais que mil palavras.

Espero que tenha gostado deste post!

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Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.

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2 comentários em “O Poema Sinfônico”

  1. Caro Maestro,
    Ouvinte e apreciador de música, desde a adolescência, e também professor do Ensino Médio, aprecio muito seu esforço e sua grande capacidade didática de tornar interessantes e fáceis os conceitos da música clássica, que podem parecer herméticos para muita gente.
    Apenas como colaboração, e talvez seja do seu conhecimento. o “Moldau”, de Smetana (capa que anuncia sua matéria) é uma melodia que foi adotada, com algumas modificações, como hino nacional de Israel, também chamado Hatikvah ou Tikvah. Se não me engano, o tema musical é anterior a Smetana, que se inspirou nele para criar seu poema sinfônico. Assim como, provavelmente, os criadores do hino.
    Abraço grande, e parabéns pelo seu brilhante trabalho.

    1. Olá Seza, muito obrigado por sua mensagem.

      Não sabia que a melodia de “O Modau”é a base do Hino de Israel!
      Muito obrigado pela informação!

      Um grande abraço e apareça sempre!

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