
Todos nós que apreciamos a boa música de concerto, seja sinfônica ou de câmara, instrumental ou vocal, em geral não nos damos conta da formidável evolução pela qual ela passou durante vários séculos. Esta evolução envolve muitas coisas: desenvolvimento do contraponto, da harmonia, dos instrumentos, das técnicas vocais e instrumentais, e por aí afora. Muito estudo, muita reflexão, muita pesquisa, muito trabalho, muita criatividade.
E tudo começou com uma música bastante simples: o cantochão, que mais tarde viria ser conhecido por Canto Gregoriano e Canto Ambrosiano. Recolhidos a salvo dentro de mosteiros e abadias, muitos dos homens que decidiram dedicar suas vidas à religião, dedicaram-nas também à música, de maneira que a base da música de concerto que apreciamos hoje está na música religiosa.
Pouco a pouco, no transcorrer da civilização ocidental, muitas obras sacras como missas de Mozart ou cantatas de Bach, concebidas para servirem ao culto, passaram a ser executadas como obras de concerto – o que certamente nunca passou pela cabeça desses compositores.
Chegou-se a um ponto em que compositores do século XX e XXI escreveram obras religiosas, sem a intenção as verem executadas em cerimônias religiosas. Temos assim um vasto repertório de música sacra moderna, que não é tocado nas igrejas, e nem é divulgado pelos grandes meios de comunicação.
Igor Stravinsky

Vamos começar com aquele que é considerado por muita gente o maior compositor do século XX, o russo Igor Stravinsky.
A obra de Stravinsky costuma ser dividida em três fases: a primeira é chamada de Russa ou nacionalista, a segunda é a fase neoclássica, e a terceira, a da música serial.
A fase russa vai até o início da década de 20, e teve como pontos altos os 3 balés escritos para a companhia Ballets Russes, do também russo Sergei Diaghilev: O Pássaro de Fogo, Petrushka e A Sagração da Primavera. Foram obras que impactaram a Europa no início da década de 10.
No início da década de 20 Stravinsky entraria na fase neoclássica, buscando referências na música do passado. Um exemplo clássico desse período é um outro balé, chamado Pulcinella. Escrito em 1920, é baseado em música do século XVIII, reescrita e modificada.
A partir de então, o compositor se debruçou sobre partituras antigas, e manteve-se nessa fase neoclássica até o final da década de 40. Evidentemente ele não se ateve apenas a reescrever obras do passado, mas criou muita música original seguindo regras básicas dos estilos de séculos anteriores. É o caso de sua Missa, estreada em 1948.
Em 1942, Stravinsky decidiu escrever algo que ele mesmo qualificou como uma “Missa de verdade”. Com isso ele se referia a uma Missa Católica, musicando o texto original em latim, e ainda mais, de uma maneira tal que a música pudesse até mesmo ser usada na liturgia.
Em muitos momentos, Stravinsky usa a polifonia típica dos compositores do final da idade média e renascença; em outros, a preocupação com a inteligibilidade do texto faz com que ele use as vozes homofonicamente.
A partitura requer um coro misto, vozes infantis e 10 instrumentos de sopro. Foi estreada em Milão, dirigida pelo Maestro Ernst Ansermet. Nessa época Stravinsky havia fixado residência nos Estados Unidos, e foi ele mesmo quem dirigiu a estreia naquele país, em fevereiro de 1949.
Krzysztof Penderecki

Penderecki iniciou seus estudos de composição na Academia de Música de Cracóvia, em 1954. Foi um aluno excepcional. Alcançou as mais altas notas e impressionou tanto os professores que imediatamente lhe foi oferecida uma cadeira de professor de composição no Conservatório, com uma classe exclusiva para si.
No ano seguinte inscreveu três peças em um concurso de composição organizado pela Associação Polonesa de Compositores, e conquistou os três primeiros lugares. Novos prêmios se seguiram, e em 1972 Penderecki recebeu o convite para ser professor visitante numa das mais importantes universidades norte-americanas, a Universidade de Yale. Tornou-se uma das maiores celebridades da música de concerto internacional.
Apesar de ser um compositor extremamente radical e experimentalista, Penderecki aproximou-se desde cedo da música religiosa. É interessante observar que isso aconteceu com frequência entre compositores originários de países do chamado bloco soviético. Durante décadas o regime comunista de Moscou tentou suprimir a prática religiosa na Rússia e nos países por ela dominados, mas não obteve sucesso. Na Polônia a igreja sempre manteve suas atividades, e Penderecki chegou a declarar que compunha música sacra simplesmente porque era proibido.
Dentre as várias obras religiosas que escreveu, a Paixão Segundo Lucas é um marco. Escrita entre 1963 e 1966, chamou a atenção por ser uma obra de grandes proporções, de genuíno sentimento religioso, escrita em linguagem de vanguarda, em um país cujo governo não aprovava nem a religião, nem a música de vanguarda.
Além da Paixão Segundo Lucas, Penderecki também escreveu os Salmos de David, um Stabat Mater, um Dies Irae, um Te Deum, um Agnus Dei, duas missas de Requiem, um Credo, Um Benedictus…. a lista é longa.
Clicando abaixo você pode ouvir de Penderecki uma peça religiosa de grande dimensão. É o “Et Ressurrexit tertia die” – E Ressuscitou no 3º dia. Trata-se de um movimento de uma oba maior, o Credo, composta já no século XXI, e estreada em 2003.
Assim como Stravinsky fez com sua Missa, Penderecki valeu-se aqui do texto tradicional em latim, o mesmo usado por compositores desde a renascença. É uma obra de grande força sonora, que inclui solistas, coro adulto, coro infantil e orquestra.
Olivier Messiaen

Deixando a Polônia, caminhamos um pouco mais para o ocidente para nos encontrarmos com um dos mais originais compositores do século XX, o francês: Olivier Messiaen que viveu entre 1908 e 1992.
De todos os compositores apresentados aqui, Messiaen é sem dúvida o mais religioso. Católico devoto, foi organista de igreja por mais de 50 anos, e quase todas suas obras são de natureza religiosa.
É considerado por muita gente o mais criativo compositor francês depois de Debussy. Diferente de muitos contemporâneos seus que buscavam uma linguagem musical pessoal, avançada, e fundamentalmente abstrata, Messiaen foi buscar inspiração nos cantos dos pássaros, na religiosidade, nos ritmos gregos e da Índia, nos timbres do gamelão javanês, entre outras coisas. Após ouvir algumas obras de Messiaen, fica difícil confundi-lo com outro compositor. Seu estilo é único.
Sua obra mais conhecida foi composta quando ele era prisioneiro durante a segunda Grande Guerra. Havia na prisão 4 instrumentos musicais disponíveis, um piano, um violino, uma clarineta e um violoncelo. Para eles Messiaen escreveu o impressionante “Quarteto para o fim dos tempos”.
Ao ser libertado, em 1941, Messiaen foi indicado professor de harmonia no conservatório de Paris. Em 1966 tornou-se professor de composição na mesma escola, onde ficou até 1978. Foi professor de importantes compositores do século XX, como Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, entre outros.
Abaixo pode-se ouvir de sua autoria um trecho da obra intitulada Visões do Amém. É uma composição curiosa: embora seja de inspiração religiosa, não há vozes, não há texto. É puramente instrumental, concebida para dois pianos, apenas. O próprio compositor escreveu sobre ela:
Amém tem quatro significados diferentes:
- Assim seja, o ato criativo.
- Eu aceito, assim será feito!
- O desejo, a vontade de que seja assim.
- Está feito, isto é para sempre, consumado no Paraíso.
Adicionando a isso a vida das criaturas que dizem amém pela sincera natureza de suas existências, eu tentei expressar a variada riqueza desta palavra em sete visões musicais.
1ª) O amém da Criação
2ª) O amém das estrelas e de Saturno, o planeta com anéis.
3ª) O amém da agonia da morte de Jesus
4ª) O amém do desejo
5ª) O amém dos anjos, dos santos e do canto dos pássaros
6ª) O amém Julgamento
7ª) O amém da consumação
Arrigo Barnabé

Gostaria de apresentar a quem ainda não conhece a personalidade de Arthur Bispo do Rosário, nascido em 1909 ou 1911, não se sabe ao certo, e falecido no Rio de Janeiro, em 1989. Considerado louco por alguns e gênio por outros, teve uma vida surpreendente, que desperta debates calorosos sobre os limites entre a loucura e a arte.
Bispo era negro, descendente de escravos. Foi marinheiro e depois empregado de uma rica família do Rio de Janeiro. Quando estava com aproximadamente 30 anos, passou a ter alucinações. Bateu à porta de várias igrejas cariocas, até que, no Mosteiro de São Bento, disse aos monges que era um enviado de Deus. Dois dias depois foi preso e levado para um asilo. Um mês depois, foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde, sob o diagnóstico de esquizofrenia, permaneceu por mais de 50 anos.
Após algum tempo, Bispo passou a produzir objetos com lixo e sucata, que, surpreendentemente, foram classificados como arte de vanguarda e comparados às obras do francês Marcel Duchamp. Apesar de ter passado toda sua vida numa instituição conhecida por muito tempo como reclusão de indesejáveis em geral, é considerado uma das maiores referências da arte contemporânea do Brasil.
Pois bem, a Artur Bispo do Rosário foi dedicada uma missa composta por um dos mais importantes compositores brasileiros da atualidade: Arrigo Barnabé.

No CD em que está gravada a obra Arrigo escreveu: “Agradeço a Artur Bispo do Rosário pelo exemplo de renúncia, resignação e compaixão”
Essa missa foi composta especialmente para o evento “Ordenação e Vertigem”, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, de 2 de agosto a 12 de outubro de 2003”.
Segue estritamente o texto em latim da missa católica, e foi escrita para uma instrumentação bastante incomum, da qual Arrigo extrai timbres instigantes: além do coro temos um violino, uma viola, um violoncelo, um piano, um cravo, flautas doces, crumhorn e fagote.
Para muita gente o mundo extremamente materialista de nosso tempo guarda pouco espaço para a religião. E para mais gente ainda, a música experimental, de vanguarda, não é propícia para refletir sentimentos religiosos. Porém, esses compositores que ouvimos hoje pensam diferente. Muita gente não gosta das sonoridades às vezes ásperas e dissonantes do experimentalismo musical; mas talvez essas sonoridades também possam exprimir muito bem os mistérios da vida e do espírito.
Espero que tenha gostado deste post!
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Saudações Musicais!