Caro leitor, imagine um pequeno funil: uma extremidade larga, na qual se pode verter algum líquido, e a outra extremidade fina, por onde esse líquido sai. Até aí, nada de mais.
Agora imagine encompridar essa segunda extremidade, dobrá-la para cima e inseri-la dentro da outra extremidade do próprio funil. Assim, ao verter o líquido esse voltaria para a extremidade maior, gerando um movimento contínuo que nunca cessaria.
Seria o princípio de uma máquina que jamais pararia de funcionar, com consumo de energia zero: é o sonho dourado de muitos cientistas.
Algo que revolucionaria o mundo, acabaria com a poluição e o desgaste de recursos naturais.
Os cientistas já têm até um nome para ela: Perpetuum Mobile, em latim, que significa Movimento Perpétuo em português.
Infelizmente, a comunidade científica tem como certo que isso é totalmente impossível – pelo menos com os conhecimentos de que dispomos hoje.
Já na música a coisa não é bem assim; muitos compositores se inspiraram nos cientistas e criaram peças às quais deram justamente o nome de Perpetuum Mobile, ou Moto Perpétuo.
Podem não ter criado algo que salvaria o planeta, mas quem sabe não ajudaram muita gente – incluindo os cientistas – a serem mais felizes?
Niccolò Paganini
Pois bem, caro leitor, nossa postagem de hoje terá como tema o moto perpétuo em música, e começaremos com … música!
O Moto Perpétuo, para violino e orquestra, opus 11, de Niccoló Paganini:
Esse Moto Perpétuo de Paganini é muito célebre, a ponto de muita gente pensar que se trata de uma obra exclusiva, a única do gênero. A verdade, contudo, é que muitos outros compositores escreveram obras desse tipo, e com esse título, até muito antes de Paganini.
Vejamos alguns.
Georg Philipp Telemann
Uma delas é a peça intitulada Perpetuum Mobile, 2º movimento da Suíte para cordas e baixo contínuo em Re maior de Georg Philipp Telemann. Essa obra está catalogada com o nº TWV 55:D12.
Claro que se trata de uma música bem mais simples que a de Paganini, pois na época de Telemann não havia ainda o alto virtuosismo desenvolvido melo mestre italiano.
Telemann viveu entre 1681 e 1767, enquanto Paganini nasceu em 1782, vindo a falecer em 1840. Foi a época do início do romantismo e do culto às personalidades dos grandes solistas, como Liszt e Chopin.
O Moto Perpétuo de Paganini se tornou célebre por ser o primeiro muito longo para o gênero – 4’30” de música ininterrupta – exigindo grande fôlego do executante.
Já a peça de Telemann é fiel à ideia de um movimento rítmico contínuo, mas sem qualquer virtuosismo.
Camille Saint-Säens
Como você já deve ter pensado, o grande desafio de tocar uma peça desse gênero é não tropeçar, digamos assim, não errar nenhuma nota. E isso dá muito trabalho: tem-se que estudar trechinho por trechinho, e pouco a pouco juntá-los, primeiro devagar e depois ir aumentando a dificuldade.
Na hora de tocar em público, é preciso ter um enorme sangue frio. Esse sangue frio dificilmente se aprende: é uma característica de personalidade indispensável a um solista.
Caminhando no tempo, encontramo-nos com um compositor que nasceu na primeira metade do século XIX: o francês Camille Saint-Säens (1835 e 1921).
Ele tem uma interessante coleção de estudos para piano, para serem tocados apenas pela mão esquerda do pianista. Um desses estudos é justamente um moto perpétuo.
Saint-Säens deu o nome de Moto Perpétuo ao terceiro de seus seis estudos para mão esquerda, opus 135.
Este estudo mostra que uma peça deste gênero não precisa ser virtuosística nem frenética – basta que tenha um ritmo constante e ininterrupto.
Os violinistas que desejam ter um moto perpétuo em seu repertório não têm à disposição apenas a célebre obra de Paganini.
Há um outro muito bonito – talvez até mais que o de Paganini – que é muito apreciado. Trata-se do Concerto Capricho Opus 5 nº 4 do compositor Ottokar Novacek.
Novacek nasceu em 1866 numa cidade que hoje pertence à Sérvia, mas que à época fazia parte do Império Austro-Húngaro. Foi um grande violinista e violista, integrante da Orquestra do Gewandhaus de Leipzig. Emigrou para os Estados Unidos, tornando-se membro da Sinfônica de Boston. Faleceu nesse país em 1900.
Por ter falecido muito jovem, Novacek deixou uma obra pequena.
Ela inclui canções, peças para violino e um concerto para piano, que foi dedicado ao grande compositor e pianista italiano Ferruccio Busoni.
Ralph Vaughan-Williams
Aliás, Busoni também escreveu um moto perpetuo, o Perpetuum Mobile para piano. Como estamos vendo, encontramos obras do gênero de compositores de diversas épocas e nacionalidades, mas é de se notar como os compositores britânicos parecem ter uma especial predileção por ele.
Vamos ouvir o primeiro um movimento da Suíte para Viola e Orquestra de Ralph Vaughan-Williams, em que sob as melodias que vão e vêm, tocadas pela orquestra, está ali, sempre firme, um frenético movimento do solista.
Outros compositores britânicos que escreveram “motos perpétuos” foram Frank Bridge, York Bowen, Malcolm Arnold e Benjamin Britten
Com isso tudo, caro leitor, quis lhe mostrar como esse gênero, diferente de muitos outros, tem uma característica bem simples e definida: um movimento rítmico ininterrupto. E é tão versátil que pode ser usado como obra avulsa, ou inserido nos mais diversos gêneros como sonatas, concertos ou suítes.
Para terminar, volto a Paganini, para deixar uma dica de leitura.
É o livro escrito pelo conceituado crítico brasileiro João Marcos Coelho.
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Espero que tenha gostado deste post.
Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!
Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.
Grande artigo! Não sabia dessa preferência dos ingleses pelo moto perpétuo. Abraços 🤗
B do autoroa noite, maestro.
Aquela composição “Typewright Machine”, não me lembro bem o nome e nem posso dizer o mesmo do título da obra, pode ser consideradsa, também, um moto perpetuo/moto continuo,estou certo?
Olá Dorival!
Sim, pode mesmo ser considerada um moto perpétuo.
Abraço Musical! 🙂
Maestro.
Obrigada com 🎵 !
Sigo-o sempre. No outro dia tive a oportunidade de vê-lo “ao vivo” (Luciano Huck) e ver como, além de tudo, és uma simpatia.
De fato Maestro, deve ter uma dedicação extraordinária o solista que encara um desafio Moto Perpétuo.
Matéria muito interessante.
Parabéns.
Tenho a sensação de movimento perpétuo sempre que ouço cânones…
Conteúdo de grande relevância e o tema vem de encontro com os meus estudos musicais atuais, aliás já compartilhei com a minha classe. Muitíssimo obrigado!
Muito interessante aprender todas essas nuances da música.
Obrigado maestro. Muito interessantes as suas informações. Realmente nunca me ocorreu que havia obras semelhantes de outros autores. E aproveito para perguntar-lhe o famosos “Voo do besouro” de Rimsky Korsakoff não é também um moto perpétuo? Abraços, J.Roberto.
Caro José Roberto, sim, você tem razão! O “Vôo do Besouro” é mesmo, na prática, um moto perpétuo!
Não tinha me dado conta!
Obrigado pelo comentário, e um abraço!
Bravo Maestro, que artigo enriquecedor!
Gostei muito da suíte para viola de RV Williams… Já vai para minha lista de repertório violistico.
Forte Abraço,
Eu como violista, lhe garanto: o repertório da viola é grande e interessante. Se gostou da Suíte do Vaughan-Williamns, pergunto: conhece o Concerto do William Walton? Um abraço.
Artigo muito interessante. Obrigado, Maestro!!