Francisco Mignone, um músico completo.
“Francisco Mignone é talvez o músico mais completo que possuímos.
Compositor de primeira plana, excelente professor, experimentado regente, virtuoso do piano, acompanhador insuperável, hábil orquestrador, notável intérprete de música de câmara, poeta aceitável, escritor cheio de verve, intelectual de grande cultura geral, tornou-se uma das figuras mais importantes da história da música brasileira.”
É com essas palavras que o escritor Vasco Mariz começa, em seu livro História da Música no Brasil, o capítulo dedicado a Francisco Mignone.
Meu incômodo sobre Mignone.
Sempre que penso em Francisco Mignone sinto um incômodo.
Explico: eu era criança e me lembro de tê-lo visto uma vez falando sobre sua obra em um programa de TV.
Importantíssimo detalhe: tratava-se de um programa de fantástica audiência, de um importante canal de TV comercial.
O incômodo é justamente o fato de que atualmente eu não vejo qualquer grande emissora de TV comercial dedicar um pouquinho que seja de sua programação aos compositores eruditos brasileiros.
Cada vez mais gente como Francisco Mignone, Guerra-Peixe ou Camargo Guarnieri vão sendo esquecidos, sendo lembrados apenas por uma pequena parcela do público interessado em música erudita.
Então nós, aqui em nosso blog seguiremos fazendo nossa parte: com freqüência falaremos sobre nossos grandes compositores, e sempre com dicas de audição suas obras.
Mignone: vida e início de carreira
Francisco Mignone nasceu em São Paulo em 3 de setembro de 1897.
Iniciou seus estudos musicais com o próprio pai, Alferio Mignone, músico italiano que chegara no Brasil um ano antes de seu nascimento.
Aos 13 anos Francisco Mignone já tocava piano em pequenas orquestras de baile e em outras situações semelhantes, a fim de ganhar algum dinheiro, para pagar seus estudos.
Tornou-se um excelente pianista, e além desse instrumento tocava flauta muito bem.
Estudou também harmonia desde muito cedo, e com apenas 16 venceu um concurso de composição com uma valsa chamada “Manon”.
O primeiro concerto de Mignone
Em 1917, com 20 anos, Francisco Mignone diplomou-se em flauta, piano e composição no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
No ano seguinte apresentou algumas de suas obras em um concerto sinfônico, e isso lhe valeu uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar na Europa, concedida pelo Governo Paulista, graças ao apoio do senador Freitas Valle.
Em 1920 Mignone partiu para a cidade italiana de Milão, onde estudou com o professor Vincenzo Ferroni, que havia sido colega de classe de outro compositor brasileiro, Francisco Braga.
Ambos haviam estudado em Paris com o célebre compositor Jules Massenet.
As três influências
O estilo de Francisco Mignone foi portanto moldado a partir de 3 influências básicas.
A 1ª delas foi a italiana, não só pelo fato de Mignone ter estudado em Milão, mas também pela forte influência que a cultura italiana exerceu na cidade de São Paulo na 1ª metade do século XX.
A 2ª influência foi a francesa, pois os métodos de harmonia e contraponto usados por seu mestre em Milão eram franceses, como vimos, por influência de Massenet.
A 3ªa influência foi da corrente nacionalista brasileira.
Música popular
Mignone havia tido uma boa experiência como músico popular na juventude, tocando flauta em grupos paulistanos de choro e seresta. Isso mais o fato de ter tido Mário de Andrade como colega no Conservatório em São Paulo certamente foram os grandes responsáveis por esta influência.
Sugiro a audição de uma pequena peça de Francisco Mignone na qual as influências européias e brasileiras são muito bem mescladas.
É o “Lundu em forma de rondó”, escrito originalmente para dois violões, em 1947.
A peça posteriormente foi arranjada para piano.
Impossível não gostar dessa pequena jóia musical!
Nos anos 1930, Francisco Mignone criou o pseudônimo Chico Bororó para escrever peças de caráter popular, que seriam interpretadas por grandes nomes como o cantor Francisco Alves.
Aloysio de Alencar Pinto, notável músico, colecionador e estudioso da música popular brasileira, falecido em 2007, tinha em seu acervo registros de várias dessas canções, gravadas em fita cassete a partir de antigos discos de 78 rpm.
Essas gravações estão hoje no acervo do Instituto Piano Brasileiro.
A qualidade do som não é alta, evidentemente, mas para quem aprecia gravações históricas, ouvir algumas delas é um deleite verdadeiro.
Aliás, o deleite com se certeza se estenderá também àqueles que porventura se incomodem com a falta de qualidade técnica, porque as canções são de inspiração do mais alto nível!
As grande obras
Francisco Mignone foi compositor de obras de grande envergadura.
Ainda sob a orientação do professor Ferroni, em Milão, ele escreveu sua 1ª ópera, O Contratador de Diamantes, baseada no drama homônimo de Afonso Arinos.
Ela foi apresentada pela 1ª vez no Brasil em 1924, no Rio de Janeiro, com bastante sucesso.
Faz parte desta sua 1ª ópera a “Congada“, que passou a ser tocada como peça sinfônica independente com muita freqüência, e faz sempre muito sucesso.
Aliás, em 1923, ou seja, um ano antes da ópera ser estreada, a Congada foi tocada no Rio de Janeiro pela Filarmônica de Viena, que fazia uma turnê pela América do Sul.
A regência na ocasião foi de ninguém menos que Richard Strauss, uma das maiores celebridas da música de concerto daquele tempo.
Graças a esse fato o nome de Migone passou a se tornar amplamente conhecido no meio musical de nosso país.
Mignone no Rio de Janeiro
Em 1933 Mignone mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu até o fim de sua vida.
Este ano também marca o início da sua fase afro-brasileira.
Foram várias obras escritas deste gênero escrita neste período:
-os painéis sinfônicos Batucajé e Babaloxá, que prococuram descrever danças e rituais do candomblé
-o bailado Leilão, que evoca um mercado de escravos
-o Maracatú de Chico-Rei
Esta última é sem dúvida a mais conhecida e apreciada obra desse período é sem dúvida.
Ela é também um bailado inspirado em histórias ligadas à construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Ouro Preto, que tem por notável o fato de ter sido construída no século XVIII por escravos libertos.
É dividida em 9 trechos:
-Introdução
-Chegada do Maracatú
-Dança das Mucambas
-O Príncipe dança
-Dança dos Três Macotas
-Dança de Chico Rei e da Rainha N’Ginga
-Dança dos Seis Escravos
-Dança dos Príncipes Brancos
-Libertação dos Escravos
A obra foi composta em 1933 e só foi apresentada como bailado em 1939, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
O sucesso foi imenso!
Compositor, regente, professor.
A partir de sua mudança para o Rio de Janeiro Mignone tornou-se professor de regência no Instituto Nacional de Música, cargo que manteve até aposentar-se.
Como regente atuou em Roma, Berlim e nos Estados-Unidos.
Paralelamente à atividade como regente e compositor, Mignone continuou compondo.
O período afro-brasileiro se encerrou e Mignone sentiu-se livre para experimentar outros caminhos.
Escreveu mais óperas, bailados, obras sinfônicas, música sacra, música de câmara, muitas canções e peças piano.
Um exemplo desse estilo, ainda nacionalista porém menos explícito e muito sofisticado, é sua notável Sinfonia Tropical.
O clima, a exuberância, o bem-estar brasileiro estão todos lá, em uma linguagem musical refinadíssima.
Há uma gravação histórica, com o próprio Francisco Mignone regendo a Orquestra Sinfônica Brasileira, em 1958.
Um tesouro de pequenas jóias
As grandes obras de Francisco Mignoe não devem de modo algum ofuscar as muitíssimas pequenas jóias que este também delicado ourives dos sons nos deixou: as Valsas de Esquina, as Valsas-Choro para piano, as canções, os estudos para violão ou a surpreendentemente grande obra para fagote solista.
Maria Josefina Mignone.
Ao se falar de Francisco Mignone, é simplesmente obrigatório falar de sua esposa, Maria Josefina Mignone.
Ela nasceu em 1923, em Belém do Pará, e teve seu contato com a música ainda muito pequena, através do piano de sua avó.
Estudou no Conservatório Carlos Gomes de Belém, e mais tarde transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde passou as estudar com a nata dos pianistas brasileiros: Magda Tagliaferro e Arnaldo Estrella.
Maria Josephina conheceu o Maestro Francisco Mignone urante um Recital na Academia Lorenzo Fernandez, onde lecionava.
Logo estariam casados.
Já uma concertista renomada, deixou de lado seu repertório dedicado a Schumann e Chopin, para divulgar com afinco a obra de seu marido.
Em 1991 foi fundado o Centro Cultural Francisco Mignone, que ela dirige até hoje!
O Brasil agradece muito a ela por tudo isso!
Enquanto escrevo esse artigo, em março de 2021, Maria Josefina completava 98 anos de idade!
Sanando o incômodo.
No início deste programa eu falei de como me sinto incomodado pelo fato de compositores da estatura de Francisco Mignone estarem caindo no esquecimento.
Como eu disse, houve até um tempo em que os grandes canais de TV se interessavam em mostrar o trabalho desses artistas… e hoje infelizmente isso não mais acontece.
Francisco Mignone, Guerra-Peixe, Camargo Guarnieri, Claudio Santoro e muitos outros compositores brasileiros do século XX construíram obras admiráveis que não merecem o esquecimento.
Aqui no nosso blog seguiremos contribuindo para mantê-los vivos em nossa memória.
Para terminar, deixo-o, caro leitor, em contato direto com este músico gigante e soberbo.
Clique no link abaixo:
Post Scriptum:
Pessoal, depois de terminar e publicar o post, descobri uma coisa fantástica: a Amazon tem à venda 3 exemplares (um novo e dois usados) do livro “Francisco Mignone, o Homem e a Obra”, de Vasco Mariz, editado em 1997.
Este livro estava desaparecido, esgotado há muito tempo.
Está muito barato na Amazon!
Deixo aqui um link direto para lá.
É só clicar na foto abaixo!
👏👏👏👏
Obrigado Maria José!
Adorável documentário, Maestro!
Deliciosa a obra de Francisco Mignone. Muito importante mesmo conhecermos mais de sua história, assim como de outros compositores brasileiros.
Muito grata Maestro por partilhar conosco tantas notícias boas
Excelente!!! 👏👏👏
Prezado maestro, tive o prazer de tocar para Mignone, por ocasião de seu octogésimo sexto aniversário, a Primeira Valsa de Esquina, no Conservatório Musical Campinas, pois D.Olga Normanha, era sua afilhada e promoveu uma homenagem à ele, e muitos anos depois entrevistei Maria Josephina, quando tocou sob a regência de Benito Juarez. Foram momentos inesquecíveis.
Que bacana, Ulisses!
Não tive a honra de conhecê-lo.
Um grande artista!
Obrigado pela visita e um grande abraço!
Como gostaria que o ECAD nos deixasse em paz, de forma que eu pudesse dar vazão à minha grande admiração por Francisco Mignone, sobretudo pela sua obra pianística, e assim tocar suas obras em meus recitais. Foi uma pena, recentemente, no meu primeiro recital pós pandemia, em Vitória, ES, fui obrigada a tirar do programa a sua “3a. Valsa de esquina”.!!!
Parabéns, Maestro Galindo, por este seu belo trabalho, tão completo e de uma maneira tão simpática.
Obrigado Galindo! Nós adoramos Mignone e já fizemos várias canções e obras pra piano solo. Muito importante esse site.
Excelente documentário. Parabéns, Maestro Galindo!!!
Obrigado, Sandra!
Lembro de criança ouvir muito sobre o maestro Mignone… Eram os anos 50 e 60 onde em minha casa ouvia muita música clássica e também popular. Foram os discos que meu pai que aprendi a colocar na vitrola da sala que formaram meu amor pela música. Sou muito grata a você Maestro por ter surgido em meio a pandemia para compartilhar seu conhecimento e amor à musica! Um grande abraço
Maravilhoso resgate da música composta por maravilhosos brasileiros.