Outro dia, conversando com uma amiga, eu falei sobre o compositor cearense Alberto Nepomuceno.
Há uma obra sua chamada Série Brasileira. Foi a primeira obra sinfônica da história a incluir um batuque africano. Contei à minha amiga que a obra causou escândalo, e um crítico chegou a dizer que aquilo se tratava de uma ofensa à nobre arte da música. Isso por volta de 1890.
Pois é, naquela época, final do século XIX, era assim. A música erudita era reservada para uma elite, e ao que parece não havia nenhum interesse em conectá-la a um expressivo número de pessoas.
Minha amiga então disse: mas ainda continua sendo uma música de elite.
Aí eu discordei! Acho que a situação mudou muito; hoje a maioria dos músicos chamados eruditos se esforça sinceramente para levar a música de concerto a muita gente. Em São Paulo, por exemplo, temos com freqüência concertos ao ar livre; há muitos concertos gratuitos ou populares; CDs de grandes compositores do passado podem ser encontrados em bancas de jornal; encontramos orquestras em muitas igrejas na periferia. Programas como o Projeto Guri, da Secretaria de Cultura do Estado, ou a Sinfônica de Heliópolis, criada pelo generoso Maestro Silvio Bacarelli, levam ensino da música a pessoas de todas as classes sociais.
Há muita gente se esforçando para levar a boa música às massas.
Isso e sábio e necessário.
E um dos mais bem sucedidos exemplos nesse campo é o longa metragem Fantasia, de Walt Disney, lançado em 1940, do qual começamos a falar na postagem anterior.
Nos dias atuais, em que tudo tem de ser muito rápido e ágil, chega a ser difícil acreditar que Disney tenha decidido criar um desenho animado para todos os movimentos da Sinfonia Pastoral, de Beethoven.
Para essa obra, Disney concebeu como cenário o Monte Olimpo, a morada dos Deuses Gregos. Surgem criaturas mitológicas, como centauros, cupidos, cavalos alados.
Baco, o Deus do vinho, Zeus, o Deus dos Deuses, Apolo, Diana. O que vemos na tela é um dia no Olimpo, que termina com o anoitecer.
Originalmente, a música escolhida para a seqüência no Monte Olimpo tinha sido “Cydalise”, do compositor francês Gabriel Pierné. Porém, Walt Disney achou que a obra não era suficientemente expressiva para a história, e acabou optando pela Sinfonia Pastoral.
Na versão original de Beethoven, o 2o. Mov, com suas melodias ondulantes, retrata uma cena à beira de um riacho.
O 3o. é uma alegre festa de camponeses. O 4o. é uma fantástica tempestade, que interrompe a festa. E o quinto e último movimento simboliza o sentimento de gratidão de todos pelo retorno do bom tempo.
Pixabay. Foto de Dovid Mark
Com Fantasia, Disney provou que a música clássica podia, sim, se associar às linguagens da cultura de massas sem nenhum problema. Prá quem acha que esse tipo de música é muito difícil, para quem acha que o povo só pode gostar de outros tipos de música, eu mostraria Fantasia, que conquista muitos fãs há mais de 80 anos.
Disney e Stokowsky foram verdadeiramente visionários, e tiveram muitas idéias surpreendentes que não chegaram a ser postas em prática. Uma das mais interessantes envolve aromas.
Eles imaginaram dispersar gases aromáticos nas salas de cinema durante a projeção do filme, associando certas imagens e ações a certos aromas.
Chegaram a definir os aromas: jasmim para a Valsa das Flores, incenso para a Ave Maria, pólvora para O Aprendir de Feiticeiro, e assim por diante.
Acabaram desistindo da idéia porque descobriram que seria impossível eliminar um aroma já dispersado na sala, antes de introduzir outro.
Mas agora deixemos os aromas de lado, e voltemos à música, que segue com a Dança das Horas, da ópera La Gioconda. Essa ópera foi escrita por um compositor italiano já bastante esquecido hoje em dia: Amilcare Ponchielli que viveu entre 1834 e 1886.
Para essa peça Disney reservou bastante bom humor, criando um ballet que representa as horas do dia. Nele as estrelas são animais bem deselegantes, como avestruzes, hipopótamos e elefantes. Observar esses animais desengonçados tentando dançar com a graciosidade típica do ballet clássico é muito engraçado.
E vamos conhecer mais do pioneirismo de Fantasia. Ele foi o primeiro filme estereofônico da história. Aliás, foi muito mais que estereofônico, pois utilizava um sistema absolutamente inacreditável chamado Fantasound, desenvlvido pela RCA especialmente para o filme.
Vejam só a sua complexidade:
A orquestra era gravada em 8 faixas sonoras separadas. Seis desses canais gravavam naipes específicos da orquestra, o sétimo gravava uma mistura desses seis canais, e o oitavo canal gravava a orquestra como um todo, a uma certa distância. Esses oito canais eram misturados, equilibrados e reduzidos a três, esquerdo, direito e central.
Na reprodução, um equipamento Fantasound padrão deveria usar três ato falantes atrás da tela, mais 65 espalhados pelas outras três paredes da sala. Mas na estréia do filme foram usados mais de 90 alto falantes.
Parecia realmente fantástico, mas o sistema acabou sendo abandonado, por causa da dificuldade em convencer os proprietários das salas de cinema a instalar um equipamento tão complexo e consequentemente caro. Apenas 16 salas nos Estados Unidos instalaram o equipamento Fantasound. Em 1941, o filme passou a ser distribuído em sistema monofônico.
No 50º aniversário do filme, em 1990, os técnicos dos estúdios Disney recriaram o sistema Fantasound usando tecnologia moderna, e os antigos registros dos estúdios. Mas foi apenas um episódio, e os DVDs encontrados hoje em dia não dispõem deste recurso.
Voltemos agora à música. E após o bom humor da dança das horas, vem o terror…… a bruxaria…….. com uma Noite no Monte Calvo, do compositor Russo Modeste Mussorgsky .
Nesta obra Mussorgsky usa como inspiração uma lenda Russa que descreve a noite em que seres fantásticos se vêm livres para assustar as pessoas do vilarejo.
Nesse número, os artistas de Disney talvez tenham retratado de forma exata o que passou pela mente do compositor, quando criou a obra. Todos estão lá: feiticeiras, demônios, vampiros, esqueletos, aguardando a chegada de Chernobog, o senhor da morte da mitologia eslava.
Então, Disney e Stokowsky nos levam diretamente desta festa de terror ao céu, com a Ave Maria de Schubert sendo executada logo em seguida à Noite no Monte Calvo, sem interrupções. Esse efeito, que poderia ser chocante, tornou-se um sucesso. Vemos agora o Monte Calvo envolto por uma névoa que se move. Surgem luzes que acabam por revelar uma procissão religiosa, na qual cada um carrega uma vela. Á medida que as pessoas entram na floresta , os galhos das árvores se se entrelaçam, formando ogivas típicas das catedrais góticas. E o filme termina com a esperança de que a vida e o bem sempre triunfarão sobre o mal.
Irwin Kostal foi contratado para regravar toda a trilha sonora de Fantasia nos anos 80, porque a trilha original, gravada em 1940, padecia de um defeito fundamental: havia sido feita antes da criação da alta-fidelidade. A nova gravação foi feita, com a melhor tecnologia disponível na época. Foi lançada em CD, mas na versões seguintes do filme, os produtores voltaram às gravações originais de Stokowsky.
O próprio Walt Disney relata como contou seus planos para unir cinema e música clássica ao maestro num jantar em Beverly Hills. Em suas próprias palavras ele disse que se sentiu nocauteado ao ouvir de um dos maiores maestros do mundo da época, sem rodeios, que estava pronto para reger a trilha sonora.
Disse Disney; essa foi uma oportunidade que eu não poderia deixar passar.
Quando dizem a mim que música de concerto não tem nada a ver com os veículos de comunicação de massa, e discordo e dou como exemplo a inteligência, criatividade e determinação de Leopold Stokowsky e Walt Disney.
DICA DE LEITURA
O livro aborda os segredos e as técnicas da arte de compor música para cinema. Em nove capítulos, o autor descreve as funções da música na linguagem audiovisual, os conceitos, as técnicas de composição musical para dramas, romances, aventuras, suspense… Completa a obra apresentando a tecnologia, benchmarking com compositores famosos, mercado e roteiro de trabalho, além de aportes sobre música para jogos digitais e apêndices com filmografia, fontes de informação, glossário de cinema, música e tecnologia. O autor Eugênio Matos, compositor de trilhas musicais para cinema e televisão, é formado em Composição para Cinema e TV pela Universidade da Califórnia (UCLA) e em Música pela Universidade de Brasília; é Mestre em Composição pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, além do trabalho de compositor, é professor da Escola de Música de Brasília.
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