Todo mundo que aprecia a música de W. A. Mozart se habituou com o fato de que o grande compositor austríaco escreveu 41 sinfonias.
Se nos perguntam: “Quantas sinfonias Mozart compôs?” 41, respondemos imediatamente e com segurança.
Acontece que a coisa não é bem assim, não… já há muito tempo se sabe que isso não é verdade. Há no catálogo de Mozart muitas sinfonias espúrias e de autenticidade duvidosa, mas que, apesar disso, não deixam de ser música de grande beleza. Vamos conhecer algumas delas hoje.
Ludwig von Köchel
Vamos começar falando do catálogo das obras de Mozart. Ele foi concluído em 1862, ou seja, 70 anos após a morte do compositor, pelo musicólogo austríaco Ludwig von Köchel. Por isso todas as obras de Mozart recebem um número precedido pela letra K – K de Köchel. Por exemplo, a Sinfonia nº 41 está catalogada como K 551. Ou como também costuma se dizer, número Köchel 551.
Pois bem, logo que foi publicado, o catálogo foi aceito como uma lista definitiva das obras do compositor. Ali estavam as 41 sinfonias, e esse número se tornou como que sagrado.
Contudo, esse catálogo nunca foi definitivo, e nem o sr. Köchel o considerava como tal. Ele mesmo publicou um apêndice com obras incompletas ou perdidas. Além disso, o catálogo passou, nesses 161 anos após sua publicação, por várias revisões feitas por outros musicólogos sérios. Muita coisa foi alterada. Já estamos na sexta revisão, que foi feita em 1964, e o número total de sinfonias compostas por Mozart mantém-se desconhecido.
Veja só, caro leitor: dentre as 41 inicialmente atribuídas a ele sabe-se com certeza que duas são de outros autores, e sobre outras duas há grande dúvida sobre a autenticidade. E além dessas 41 há cerca de outras 20 que são de Mozart com certeza, e mais outras 10 de autenticidade duvidosa.
Pode então estar se perguntando: mas por que é que existem tantas dúvidas? O compositor não escreve a partitura e assina no final, como um pintor assina seu quadro? Isso não basta?
Em princípio é assim, mas depois disso muitas coisas acontecem, para embaralhar os fatos.
Cópias
Vamos a um exemplo: sabemos hoje que a formação de qualquer compositor europeu incluía o contínuo trabalho de analisar obras de outros compositores, fossem antigos ou seus contemporâneos.
J. S. Bach estudou e analisou as obras de Vivaldi. Mozart fez o mesmo com as obras de Handel, e Beethoven com as de Haydn. E fazia parte dessa atividade de análise, copiar partituras de outro compositor. Enquanto se copiava, se aprendia.
Então Mozart certa vez copiou toda a partitura de uma sinfonia de seu amigo Michael Haydn – apenas copiou as notas, e não se preocupou em escrever o nome do compositor, pois afinal, era uma cópia para ele mesmo usar.
Mais tarde, resolveu apresentar esta sinfonia de M. Haydn em um concerto juntamente com uma sinfonia sua, e usou sua cópia como guia.
Pois bem, quando Köchel montou seu catálogo, tinha em mãos duas partituras de duas sinfonias, que haviam sido executadas em um mesmo concerto, ambas com a caligrafia de Mozart. Não teve dúvidas: considerou as duas como sendo do mesmo compositor. São as sinfonias conhecidas hoje como as de números 36 e 37.
Só em 1907 é que um outro musicólogo concluiu e provou que a sinfonia 37 era de fato de Michael Haydn; por isso é que hoje muita gente estranha quando compara uma coletânea de gravações de todas as sinfonias de Mozart em que a 37 está excluída.
Importante: não se trata de música de má qualidade! Pelo contrário, Michael Haydn foi um grande artista, e vale a pena conhecermos essa obra.
Ela começa com um movimento rápido, Allegro con spirito, precedido por uma introdução lenta, um adagio maestoso.
Essa introdução é de Mozart, e foi incluída quando ele quando apresentou a obra em público. Depois dela tudo é de Michael Haydn.
Michael Haydn
Era o irmão mais novo de Joseph Haydn, igualmente talentoso, mas menos ambicioso, de modo que apesar de ter tido a oportunidade de fixar-se em um grande centro musical, manteve-se durante 40 anos a serviço da corte de Salzburgo. Lá produziu principalmente muita música sacra, e também uma boa quantidade de música secular. Dentre essas obras não-religiosas encontramos uma grande produção sinfônica – ele escreveu cerca de cerca de 40 sinfonias.
Essa sinfonia que acabamos de ouvir não foi a única atribuída erroneamente a Mozart. Uma outra confusão foi feita com a Sinfonia nº 23 de M. Haydn.
Ela começou assim: no catálogo original de Ludwig von Köchel encontramos uma belíssima fuga para orquestra.
Köchel deu a essa fuga o nº 291. Acontece que essa fuga também era de M Haydn… Por que mais esse erro? Primeiro Köchel teve, mais uma vez, acesso a um manuscrito da fuga com a caligrafia de Mozart. Segundo o próprio Mozart usou um tema bem semelhante ao tema da fuga em um de seus quartetos de cordas.
Esses dois fatos levaram Köchel a considerar a obra como original de Mozart.
Mais tarde foi encontrada uma partitura de uma Sinfonia de M. Haydn, em que o terceiro movimento era justamente essa fuga em questão…
A sinfonia em seu todo é uma belíssima obra, comparável a muitas das melhores sinfonias de Mozart.
Amizade
Como eu disse há pouco, M. Haydn foi um fiel servidor da corte de Salzburgo, cidade natal de W. A. Mozart. Ele assumiu no ano de 1763 o cargo de mestre de capela de um generoso patrono das artes, o arcebispo Schrattenbach. Tinha 26 anos de idade.
Não era pouca coisa. Segundo Leopold Mozart, pai de Wolfgang, a vida musical de Salzburgo era esplendorosa. Com mais de 100 músicos contratados, fazia-se música para diversas atividades cívicas e sociais, religiosas e seculares. Naquele tempo os principais cargos eram destinados somente a músicos italianos – havia até aulas de italiano para os cantores – e não era assim tão fácil a um músico alemão conseguir uma boa posição.
M. Haydn e Leopold Mozart tornaram-se bons amigos, e conheceu muito bem o pequeno Wolfgang, que tinha então 8 anos de idade.
Em 1781 Wolfgang mudou-se para Viena, à revelia de seu pai. Tinha 25 anos. Dois anos depois, voltou para Salzburgo para visitar a família. Encontrou M. Haydn doente, e com um problema em mãos: havia recebido uma encomenda para escrever 6 duos para violino e viola. Faltavam dois deles, o prazo para a entrega estava se esgotando, e Michael não tinha forças para terminar o trabalho. Wolfgang não teve dúvidas: escreveu rapidamente os duos que faltavam e os entregou a Michael.
Ficou então para a história mais esta colaboração entre esses dois grandes músicos.
Aproveito para lhe sugerir mais uma vez um exercício de escuta. Observe como no duo de Mozart a escrita é contrapontística, com os dois instrumentos em diálogo quase o tempo todo, ao passo que no duo de M. Haydn a escrita é do tipo melodia e acompanhamento, com o violino executando a melodia e a viola fazendo o acompanhamento. Ouça com atenção e será fácil perceber.
Espero que tenha gostado deste post.
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Ah, e não vá embora sem antes deixar um comentário!
Saudações Musicais do maestro J. M. Galindo.
Maestro, isto é um aula sua, sem o senhor e sem turma. Neste formato acho longo e acabo nao lendo tudo, vou pulando, prometendo para mim mesmo que oitra hora volto. Mas nao volto.Queria suas aulas de volta, o grupo e as trocas. Saudades!
Maestro, gostei muito do texto, sabia da volumosa produção de sinfonias de Mozart mas essa “confusão” de autorias, ajudas mútuas etc. não conhecia, achei muito interessante e nos enriquecem culturalmente sobre música clássica. Ouvi os 4 vídeos/áudios mas com certeza preciso ouvir mais vezes para identificar as pontuações que você indicou.
Eu pessoalmente gosto bastante desse formato para leitura & audição. Muito obrigado por ter enviado.
Pedro, obrigado por seu feedback em relação ao formato leitura/audição que eu faço em meus posts. Eu creio que ler e em seguida ouvir é muito proveitoso. Um grande abraço!
Muito bom, maestro !
Gosto dessas histórias sobre os músicos e suas composições, porque colorem a vida deles e trazem a humanidade de cada um.
Maestro, seus escritos nos fazem pensar mais profundamente sobre ouvir e conhecer essa música que tanto amamos. Não sei se você já viu, (acho que sim), algumas coisas sobre o trabalho daquele grupo argentino Le Lutier; é, pra mim, também uma forma de se deixar as aparências de lado e ouvir a música como ela é e não como alguns querem que a compreendamos. Parabéns e continuamos em contato. Abraços!
Sim, conheço bem o “Les Luthiers”! Geniais! Um abraço!
Excelente Post, Maestro Galindo!
Obrigado!
Abraço,
Paulo D’Angeles
@filarmonicadovale
Obrigado a você, Paulo! Sucesso com a Filarmônica!
Como eu nunca tinha participado de seus grupos, li avidamente suas explicações, que muito me agradaram e não achei longo o texto.
Só tenho a agradecer pelo prazer de ler seus textos.
Obrigado, Liana. Em um mundo apressado como este, é um privilegio ter amigos que valorizam a leitura! Um grande abraço!
Maestro eu tenho um conjunto de CDs com todas as sinfonias de Mozart conduzidas por Neville Marriner e nunca tinha notado que na 36 o disco informa que só a introdução é de Mozart. Finalmente aprendi. Obrigado
Estamos sempre aprendendo, não é? Aprendo muito com você, também! Um abraço!Para que eventualmente leia este comentário, o Eypto é um grande conhecedor de cinema e tem uma excelente comunicação em newsletters!
Mais uma contribuição de valor incomensurável do nosso querido maestro. A abordagem dos temas é sempre de forma leve, didática e saborosa. Por mais que se saiba de algum dos assuntos escolhidos, sempre termino sabendo um pouco mais, nunca de menos.
Muito obrigado, Ivan. Sei que você é um grande conhecedor de música, por isso este seu comentário é valioso. Um abraço!
Oi, bom dia, Maestro.
Aqui estou eu novamente agradecendo por seus textos que tanto me encantam – principalmente quando o personagem principal é Mozart – já falamos sobre isso, certo ?
Eu adorei !!! Obrigada pelo presente.
Oi Rita, eu é que agradeço por passar por aqui e deixar seu comentário! Volte mais vezes! Um abraço!
Boa tarde Maestro. Muito bom ler este artigo com exemplos esclarecedores. Dúvidas que permeiam a nossa ignorância. Também permearam as mentes mais prodigiosas da música: como Köchel, um estudioso. O conteúdo , Maestro, mostra como funcionava a mente desses “privilegiados” gênios. As influências, que outros compositores exerciam sobre eles, são as senhas para tentarmos nos aproximar de seus processos criadores. Lembro o personagem de Machado De Assis: “Aproveito-me das lacunas de outros; aproveitem-se das minhas.”
Olá Alexandre. Maravilhosa esta frase do Machado de Assis. Vou guardá-la na memória com cuidado. Muito obrigado por seu comentário!
É com prazer que me tornei sua aluna. Escrita/ música oferece um maior esclarecimento do que vc está ensinando. ( é lúdico) Obrigada maestro .