ABERTURAS

Pobres aberturas; em geral elas antecedem os concertos, que antecedem as sinfonias; funcionam como uma espécie de aperitivo musical, e quase sempre são lembradas como obras de pequena importância.

Mas algumas…. são verdadeiras obras primas.

Eu me lembro de quando era estudante e costumava freqüentar os concertos dominicais da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo.

Naquela época eu vibrava principalmente com as aberturas dos concertos. Eu ainda não tinha treino auditivo suficiente para acompanhar as longas sinfonias, que às vezes me cansavam; mas com as aberturas era diferente!

Por isso este gênero é tão importante: para aquela pessoa que está se iniciando no mundo música de concerto, aberturas são fundamentais.

Pois bem, uma delas ficou para sempre em meu coração, como uma música deliciosa que me traz boas lembranças, e que eu gosto de ouvir até hoje.

Antes que nosso ouvinte diga que estou sendo egoísta, que estou pensando apenas em mim, eu digo: ela é presença constante no repertório de todas as orquestras sinfônicas. Além disso, é impossível não gostar dela.

Alegre, vibrante, inspirada, é Abertura da ópera As Bodas de Fígaro, de Wolfgang Amadeus Mozart.

https://www.youtube.com/watch?v=SvyA2t8A2uk&t=87s
Orquestra Filarmônica de Viena; Mariss Jansons

Há muita coisa interessante a ser dita sobre as aberturas ouvidas hoje em dia. Muitas têm origem e estrutura completamente diferentes.

Vamos comparar essa abertura de Mozart com uma outra, escrita 180 anos antes: é a abertura da Ópera Orfeu de Monteverdi, composta em 1607.

Jordi Savall e La Capella Reial de Catalunya no Gran Teatro del Liceo de Barcelona.

Mal pode ser considerada uma abertura, se comparada com a de Mozart. A de Mozart dura mais de nove minutos; esta de Monteverdi não chega a dois.

Os compositores experimentaram vários tipos de abertura, até chegarem a alguns padrões que se consagraram.

Um deles foi criado em Paris, ainda no século XVII; ele foi aceito, disseminado e copiado por compositores de toda a Europa: ficou conhecido como Abertura Francesa, e foi criada pelo compositor Jean-Baptiste Lully

Ela tinha duas partes muito contrastantes: uma em um andamento lento, de caráter solene, e um padrão ritmico bem marcado, incisivo, e outra de andamento rápido e escrita contrapontística, muitas vezes uma verdadeira fuga.

La Chapelle Royale, dirigida por Philippe Herreweghe.

Lully foi o mais importante compositor francês do século XVII. Viveu ente 1632 e 1687, e é tido como o fundador da ópera nacional francesa. O modelo definido por ele para a abertura de suas óperas se tornou tão marcante que vários outros compositores o imitaram – no melhor sentido da palavra, é claro.

Um exemplo vem da Inglaterra, com Henry Purcell, considerado um dos maiores compositores ingleses de todos os tempos.

Ele foi praticamente contemporâneo de Lully, tendo vivido entre 1659 e 1695.

The English Concert · Trevor Pinnock

Mesmo após a morte de Lully, seu modelo continuou sendo seguido, e já extrapolava o mundo da ópera.

Um exemplo interessantíssimo é a música que Georg Friedrich Handel escreveu para acompanhar uma exibição de fogos de artifício, num dia de grande festa em Londres.

Trata-se de uma suíte de danças, encabeçada por uma bela abertura francesa.

O padrão de Lully é seguido à risca!

Minnesota Orchestra . Maestro Stanislaw Skrowaczewski.

Paralelamente à abertura francesa, existia a abertura italiana. E a abertura que os italianos usavam em suas óperas eram totalmente opostas à abertura francesa.

No que diz respeito ao andamento, tudo era ao contrário: ela começava rápida, tinha um trecho central lento, e voltava ao andamento rápido para terminar. Não usava os ritmos solenes e pontuados, e também não adotava a escrita contrapontística.

O ritmo pontuado e o estilo fugato traziam pompa e complexidade para a abertura francesa. Pudera, ela se desenvolveu dentro do Palácio de Versalhes, sob a cuidadosa fiscalização do mais vaidoso e pomposo dos monarcas: Luis XIV, o rei sol.

Já a abertura italiana, ao contrário, refletia o fato de que a opera na Itália se tornava cada vez mais popular.

Um exemplo a ser citado é a Abertura da ópera Farnace de Antonio Vivaldi.

Freiburger Barockorchester

Um fato curioso é que em muitas situações não se dava grande importância para as aberturas de ópera. Elas eram na verdade usadas – isso mesmo, usadas – apenas como um aviso de que o espetáculo ia começar. Assim as pessoas ficavam sabendo que era hora de parar de conversar e tomar seus lugares. Por isso, muitos compositores escreviam aberturas cujos ritmos e melodias não tinham rigorosamente nada a ver com a música que seria ouvida durante a ópera – ninguém iria perceber!

Contudo isso foi mudando aos poucos, e as aberturas passaram a ser vistas com mais interesse.

Sobre isso, há alguns exemplos interessantes.

Um deles é do compositor Christoph Willibald Gluck, que apesar de alemão, teve um papel muito importante na ópera francesa.

Para sua ópera Ifigênia em Táurida, que é cantada em francês, Gluck cria uma abertura que tem tudo a ver com o que vai acontecer no início do primeiro ato da obra.

Neste início, Ifigênia, que na mitologia grega é filha de Agamenon e Clitemnestra, enfrenta um furioso ataque das forças da natureza. Ela e as sacerdotisas que a acompanham pedem aos deuses que cessem a tempestade, e que a tranquilidade seja restabelecida….. o que efetivamente acontece.

A abertura da ópera descreve perfeitamente essa situação…. como Ifigênia começa a cantar antes que a abertura acabe. A abertura aqui deixa de ser uma peça musical avulsa; ao contrário, ela prepara o ambiente e se entrelaça com a primeira ária da ópera.

Les Musiciens du Louvre · Maestro Marc Minkowski

Numa época em que muitas pessoas assistiam ópera apenas para ouvir as habilidades e piruetas vocais dos cantores, Gluck insiste numa harmoniosa interação entre a música e teatro, recusando os malabarismos vocais em favor de um canto mais simples, e de texturas orquestrais sintonizadas com a trama.

Por isso ele ocupa um papel importantíssimo no desenvolvimento da ópera.

Seu discípulo mais importante foi Antonio Salieri, professor de Beethoven, grande compositor que até hoje é imensamente subestimado.

Sua abertura da ópera Les Danaïdes. Não é uma simples música de entretenimento, mas uma peça que antecipa as situações dramáticas que virão.

Heidelberg Symphony Orchestra. Maestro Thomas Fey

Essa abertura já nos traz os ventos do romantismo musical, que seria definitivamente deflagrado por seu aluno mais notável: Ludwig van Beethoven.

Mas as aberturas românticas ficarão para outra postagem!

Até lá!

DICA DE LEITURA.

Em se falando de Aberturas de Ópera, fica uma dica para um espetacular livro sobre a ópera: uma das formas de arte mais extraordinárias dos últimos quatro séculos. O livro de Carolyn Abbate e Roger Parker já nasce como clássico: talvez o gênero não tenha recebido um tratamento tão ambicioso. Se o leitor especializado encontrará neste ensaio análises profundas, o leigo terá um guia que o conduzirá às várias facetas e períodos da ópera. Da corte dos Médici na Florença do século XVI até o presente, passando por Monteverdi, Händel, Mozart, Verdi, Puccini, Berg e Britten, os autores traçam análises profundas dos contextos sociais, políticos e literários, das circunstâncias econômicas e das quase constantes polêmicas que acompanharam o desenvolvimento do gênero nos últimos quatro séculos. Isso sem se descuidar da apreciação propriamente estética das óperas estudadas e do aspecto central e talvez definidor dessa forma de arte: as tensões entre palavra e música, personagem e intérprete. Apesar dos problemas atuais, notadamente a cruel concorrência dos espetáculo de massa, de jogos de futebol a mega shows em estádios, a audiência, no entanto, cresce e a ópera permanece criativa e florescente, com encenações originais e intérpretes talvez tecnicamente melhores do que jamais foram.

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