Cartas de Mozart – 1

Hoje vamos conhecer um pouco do homem Mozart; veremos o que ele pensava sobre música, família, amizades, suas ambições …. e até fofocas e maledicências.

Como podemos saber de tudo isso? Simples cara leitora ou leitor! A partir da leitura de alguns trechos de muitas das cartas de Mozart que foram preservadas.

Os trechos aqui transcritos são de cartas escritas por Mozart após fixar-se em Viena.

Mozart recém-chegado em Viena

Ele acabara de chegar na capital do Império Austro-Húngaro, um dos maiores centros musicais do mundo, após de pedir demissão de seu medíocre emprego em Salzburgo.

Mozart teve que lutar bravamente para sobreviver em Viena como um músico independente, contra a vontade do próprio pai.

A primeira preocupação era com a própria subsistência.

Nesta carta enviada a seu pai em 16 de junho de 1781, vemos Mozart tratando de dinheiro, e podemos notar como as coisas não mudaram muito para os músicos nos últimos 220 anos…

O senhor sabe bem que, para alguém que quer ganhar dinheiro, esta é a pior estação do ano. As famílias mais distintas viajaram para o interior, e assim não me resta outra coisa senão preparar-me para o inverno.

Neste momento conto apenas com uma aluna, a candessa Rumbeck. Poderia ter mais, é claro, se baixasse o preço, mas se o fizer o meu crédito cai. Calculo 6 ducados por 12 aulas e ainda aviso-lhes que só o faço por favor especial.

Prefiro 3 alunos que paguem muito bem a 6 que paguem mal. Mesmo assim só com essa aluna já dá para sobreviver, e por enquanto isso basta.

Escrevo-lhe isso para que não pense que lhe mando 30 ducados apenas por egoísmo. Fique tranqüilo, mandarei mais assim que tiver – e terei! Porém os outros não precisam saber qual a nossa situação.”

Ou seja: no começo, Mozart sobrevia apenas dando aulas de piano. Mas era um excelente pianista, e sua reputação nesse sentido era muito boa. Logo começou a se apresentar como pianista, tocando seus próprios concertos, e com isso conseguiu um bom dinheiro.

Clicando no link abaixo você poderá ouvir o 30. movimento do Concerto para Piano catálogo Koechel 482. Mozart compôs este concerto em 1785, quando estava em Viena havia 4 anos.

Mozart, Concerto para Piano KV 482, 3o. movimento. Daniel Barenboim e a Filarmônica de Berlim.

A 1a. grande oportunidade de Mozart.

Era agosto de 1781, quando Mozart teve sua primeira grande oportunidade em Viena: foi convidado para musicar um libreto, que resultaria numa de suas mais importantes óperas: O Rapto do Serralho.

Sobre isso Mozart escreveu ao seu pai em 1º de agosto.

Anteontem finalmente o jovem Stephanie me entregou um libreto. Ele pode ser um homem mau para com os outros, não sei e nem me importo com isso, mas devo dizer que comigo se comporta como um verdadeiro amigo. O libreto é bastante bom. É um assunto turco e o título é Belmont e Konstanze ou O Rapto do Serralho.

A abertura, um coro no 1º ato e o coro final escreverei para uma orquestra à moda turca. Estou tão contente com a encomenda que já terminei de escrever a 1ª aria da sra. Cavalieri, que fará um dos papeis principais, e da mesma forma a do sr. Adamberger, e o terceto que encerra o 1º ato.

É verdade que o prazo é curto, pois a intenção é estrear a obra já em meados de setembro, mas as circunstâncias que fazem com que a apresentação se realize nessa época, e também as novas idéias que brotam da minha cabeça, me agitam o ânimo a tal ponto que dirijo-me à escrivaninha sempre com a maior excitação e de lá preferia nem me levantar.

O grão-duque virá a Viena, e foi por isso que Stephanie me pediu para terminar a obra, se possível , em tão pouco tempo. Decerto será um ponto em meu favor eu ter aceito escrevê-la neste prazo tão curto.”

Apesar disso a composição da ópera acabou se extendendo por um ano!

A estréia foi tumultuada, mas o público gostou, e pouco a pouco ela se firmou no repertório.

Abaixo, de O Rapto do Serralho, a belíssima aria Hier soll ich denn sehen – Aqui então eu a verei, Konstanze, minha alegria.

Ryland Davies (BELMONTE), The London Philharmonic Orchestra, maestro Gustav Kuhn.

Idéias de Mozart sobre Estética.

Enquanto compunha o Rapto do Serralho, Mozart escreveu a seu pai em 13 de outubro de 1781, uma carta na qual há um trecho muito especial, um dos poucos textos em que Mozart fala de estética, e que o mostra não só como um músico genial, mas também um artista com um acurado senso teatral.

Agora, sobre o libreto da ópera. O sr. tem razão, mas os versos adequam-se muito bem ao caráter ignorante, grosseiro e mal intencionado do personagem Osmin. Apesar de eu saber que os versos não são perfeitos, eles se enquadram tão bem dentro dos pensamentos musicais que eu já tinha em mente, que acabei gostando deles…

Numa ópera, a poesia deve ser uma criança obediente da música. Por que as óperas cômicas italianas são recebidas por toda parte com tanto sucesso, apesar de todas as misérias que encontramos no texto? Até mesmo em Paris vi isso acontecer!

Porque nelas reina a música, e isso faz esquecer todo o resto. Naturalmente, o sucesso é maior ainda se todo o esquema da peça for bom, se as palavras forem juntadas à serviço da música e não por causa da rimas, que às vezes estragam por estrofes inteiras a concepção do compositor.

É claro que os versos são indispensáveis à música, mas as rimas somente pelas rimas só causam danos. Aqueles senhores que são demasiadamente pedantes nesse sentido certamente desaparecerão com suas músicas. O melhor é quando um bom compositor, que entende de teatro e que sabe ele mesmo dizer o que pretende fazer, e um poeta inteligente se encontram…”

Isso aconteceu na Ópera Don Giovanni, em que a música de Mozart vai além da beleza pura e simples, e acentua com perfeição as situações dramáticas.

É o caso da cena final, quando o fantasma do comendador surge, apavorando o imoral Don Giovanni.

A música de Mozart é soberba, refletindo perfeitamente o pavor de Dom Giovanni.

Don Giovanni (Samuel Ramey) Commendatore (Kurt Moll)

Teatro: uma paixão de Mozart!

Mozart realmente apreciava o teatro. Em 4 de julho de 1781 escreveu uma carta a sua irmã, na qual, entre outras coisas diz o seguinte:

Eu, graças a Deus, estou com boa saúde e com bom humor. Minha única diversão é o teatro. Gostaria que você assistisse aqui a apresentação de uma tragédia. Na verdade, não conheço nenhum teatro onde as peças de qualquer tipo fossem levadas de forma tão excelente como aqui.

Aqui, todos os papéis, mesmo o mais insignificantes, são desempenhados por bons atores, e todas as peças têm duplo elenco“.

Vamos ouvir mais um pouco da música operística de Mozart: da ópera Cosi fan Tutte – assim fazem todas – a aria Come scoglio – como uma rocha.

O texto diz: “Como uma rocha nos mantemos imóveis, suportando os ventos e as tempestades, confiando no amor”.

Fiordiligi: Dorothea Röschmann. Staatsoper Berlin. Daniel Barenboim .

Mozart não era fácil!

Caro ouvinte, apesar de genial – ou talvez por causa disso – Mozart não era fácil

Fofoca e maledicência são muito comuns em sua correspondência!

Veja como, nesta carta de 22 de agosto de 1781, enviada a seu pai, Mozart fala sem papas na língua de um amigo de ambos, um certo senhor Auerhammer , e de sua família.

Em tempos de politicamente correto, isso é totalmente inaceitável!

“O senhor Auerhammer é o melhor dos homens, apenas é um pouco bom demais! Porque lá em sua casa quem usa as calças é sua esposa, que é a mais limitada e boba tagarela do mundo.Quando fala, ninguém tem coragem de abrir a boca. O senhor Auerhammer, das vezes que fomos passear juntos, pediu-me que não contasse às suas mulheres, esposa e filha, que andamos de fiacre ou que tomamos algumas cervejas. Pois bem, como posso confiar em um homem que não pode abrir a boca em casa?”

Na mesma carta, mais adiante lemos:

“Não pretendo descrever a mãe, basta dizer que quando estamos juntos à mesa é difícil não romper em risos. O senhor conhece a sra. Adlgasser aí em Salzburgo? Pois essa peça é ainda pior, pois tem a boca suja também, portanto além de boba é mal intencionada. E agora a filha! Se um pintor quisesse retratar o diabo de modo fiel, bastaria recorrer ao seu rosto! Sua tanto que me causa náuseas, e anda desnuda como se carregasse um papel pendurado dizendo: “por favor, olhem para cá!

“Vade, satanás!”

Pois é! Mozart, compositor de obras sublimes, era uma pessoa com qualidades e defeitos, como qualquer outra.

Mozart e Muzio Clementi.

Em relação a seus colegas compositores, Mozart podia ser ainda mais ferino.

Muzio Clementi, respeitado pianista italiano, admiradíssimo por Beethoven, também não foi poupado, como vemos nesta carta de 7/6/1783.

Agora gostaria de dirigir algumas palavras à minha irmã a respeito das sonatas de Clementi.

Quem as toca ou ouve pode sentir que as composições não são relevantes. Partes que causem assombro ou que chamem atenção elas não possuem, exceto as passagens em sextas ou oitavas.

Peço à minha irmã que não perca muito tempo com isso, que tome cuidado para não estragar a posição correta das mãos, até agora tranqüilas e firmes, e que a mão não perca, por causa disso, sua leveza, agilidade e rapidez contínua.

Pois afinal, que vantagem isso traz? Se fizer as passagens de sextas e oitavas com a máxima velocidade ( o que, aliás, ninguém é capaz de fazer, nem mesmo o próprio Clementi), tudo virará apenas uma terrível monotonia e nada mais! Clementi é um charlatão, como todo italiano. Ele não possui nada – nada – o menor bom gosto ou interpretação, e muito menos sentimento.

Caro ouvinte, aí temos uma grande probabilidade de estarmos diante de um caso de inveja.

Clementi já era um músico internacionalmente famoso, enquanto ainda Mozart lutava por um lugar ao sol.

Clementi, por seu lado, reconheceu a importância de Mozart e aprendeu a admirá-lo.

Mozart tinha o direito de não gostar de Clementi, ou de quem quer que fosse. Contudo, chamá-lo de charlatão…. aí ele exagerou!

Clementi foi um músico excepcional, como pianista e como compositor. Beethoven era um grande admirador de suas sonatas para piano, e deixou-se influenciar largamente por ele.

Clicando no link abaixo podemos ouvir o belíssimo 1o. movimento de sua Sonata no. 25.

Maria Tipo, ao piano.

Mozart era amado em Praga!

Em 15 de janeiro de 1787, Mozart está em Praga – cidade que ele adorava – e de lá escreve uma carta ao seu amigo Barão Gottfried Jacquin, falando de um de seus sucessos.

Querido amigo!

… Ao chegarmos, na quinta-feira, dia 11 ao meio dia, imediatamente já tínhamos muito o que fazer para nos prepararmos até a 1 hora, para o almoço. Às 6 horas fomos de carro com o Conde Conac ao chamado baile de Breitfeld, onde costumam se reunir as flores mais bonitas de Praga. Isso é que teria sido algo de bom para o senhor, meu amigo! Vejo-o na minha imaginação – correndo? será?-não, capengando! atrás das belas mulheres e moças.

Não dancei e nem apalpei as mulheres. Não fiz o 1º porque estava cansado, e o 2º porque sou um tonto de nascença. Mas olhei com grande prazer as pessoas pulando com uma fruição íntima ao ritmo da música da minha Fígaro, transformada em contradança. Pois aqui não falam de outra coisa senão da Fígaro – não tocam, sopram, cantam e assobiam outra coisa senão a Fígaro -não assistem outra ópera senão a Fígaro e para sempre a Fígaro!

Abertura de “As Bodas de Figaro”. Sinfônica de Viena, maestro Fábio Luisi.

Mozart e Salieri numa boa!

A última carta de Mozart foi escrita em 14 de outubro de 1791, para sua esposa, que se encontrava em uma estação de banhos.

Nada nela nos faria pensar que menos de 2 meses depois ele estaria morto. Nesta carta Mozart conta como ficou feliz por ter levado o compositor Antonio Salieri à uma apresentação de sua última ópera, A Flauta Mágica.

Ele diz:

Ontem, dia 13, quinta-feira, às 6 horas, fui de carro buscar Salieri e a sra, Cavalieri, e os acompanhei até o camarote.

Você não pode imaginar como eles foram amáveis e como gostaram não apenas da música, mas também do texto e de tudo mais. Ambos disseram que esta é uma ópera que merece ser apresentada diante do soberano mais importante, por ocasião da cerimônia mais solene.

Salieri acompanhou e observou tudo com muita atenção, e da abertura ao último coro não houve um número sequer que não fizesse com que bravos e bellos partissem de seus lábios.

O trecho mais famoso dessa fantástica obra é sem dúvida a “Aria da Rainha da Noite”.


Diana Damrau. Filarmônica de Viena. Riccardo Muti.

A morte de Mozart.

Mozart viria a falecer no dia 5 de dezembro de 1791, à uma hora da manhã. Em 20 de novembro daquele ano ele deitou-se, mal conseguindo mover os membros do corpo, devido a inchaços dolorosos nas juntas dos braços e pernas. Vomitava muito, e para agravar, foi submetido a várias sangrias, o que pode até ter-lhe causado septicemia – por melhores que fossem as intenções dos médicos da época.

Uma das cunhadas de Mozart, Sophie, presenciou sua morte, e a descreveu anos mais tarde:

“Quando cheguei lá estava Süssmeyr, seu aluno, sentado junto à cama de Mozart. Na colcha estava o Requiem, e Mozart lhe explicava como, em sua opinião, ele deveria ser concluído, após sua morte.”

Essa história é muito contestada por diversos musicólogos, que a enquandram na enorme coleção de histórias fictícias que se sucederam à sua morte.

Para terminar, um trecho do Requiem.

Anna Tomowa-Sintow, Soprano. Helga Müller Molinari, Alto. Vinson Cole, Tenor .Paata Burchuladze, Baixo. Wiener Singverein Wiener Philharmoniker .Herbert von Karajan

Sublime, genial, maldoso, fofoqueiro, invejoso, amoroso, cordial…. humano!

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7 comentários em “Cartas de Mozart – 1”

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