Quando se fala na música sacra de W. A. Mozart, pensa-se logo em sua magnífica Missa de Réquiem, na grande Missa em do menor, ou na conhecida Missa da Coroação.
Contudo, além dessas obras de grande envergadura, Mozart deixou muitas obras menores absolutamente encantadoras.
Vamos começar com uma peça que, dentre as pequenas obras sacras de Mozart, é talvez a mais conhecida.
Seu nome é Ave Verum Corpus.
Trata-se de um texto litúrgico muito antigo, cuja fonte mais antiga é do século XIV.
Acredita-se que tenha sido escrito por um papa, Inocêncio III, IV ou VII.
Assim sendo, o texto era usado na eucaristia, ou seja, na cerimônia que relembra a última ceia de Cristo com seus apóstolos.
Na Idade Média era recitado ou cantado no momento da consagração, em que o sacerdote elevava a hóstia.
Numa obra sacra, é importante saber o texto!
Este é o texto que Mozart musicou:
Letra em latim:
Ave verum corpus, natum de Maria Virgine,
vere passum, immolatum in cruce pro homine.
Cuius latus perforatum fluxit aqua et sanguine:
esto nobis praegustatum in mortis examine.
O Iesu dulcis, O Iesu pie, O Iesu, fili Mariae.
Tradução:
Salve, verdadeiro Corpo nascido da Virgem Maria,
verdadeiramente atormentado, imolado na cruz pelos homens,
de cujo lado perfurado fluíram água e sangue;
sê para nós uma antecipação [do banquete celeste] na provação da morte.
Ó Jesus doce, ó Jesus piedoso, ó Jesus, filho de Maria!
A relação entre texto e música
Vamos observar com alguma atenção a relação entre texto e música.
Os dois 1ºs versos – Ave, verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria – falam do o corpo de Cristo.
A música então, é serena, tranquilizadora.
Os próximos versos falam do sofrimento de Cristo.
A música sublinha esse significado com aquilo que nós músicos chamamos de modulação, uma mudança na harmonia, com a introdução de um acorde até então não utilizado.
Esse acorde está colocado exatamente sobre a palavra “Imolatum” – imolado em português.
Os próximos versos são ainda mais duros.
Dizem que o corpo de Jesus foi perfurado e dele fluíram água e sangue.
Da mesma forma, temos uma nova modulação, mas que nos causa uma sensação diferente da primeira.
A música aqui fica escura, sombria.
Segue-se uma sucessão de modulações que faz com que a música pouco a pouco volte ao caráter sereno e consolador, condizente com os últimos versos do poema: que seu corpo possa ser uma antecipação do banquete celeste.
Clicando na imagem abaixo você poderá ao mesmo tempo ouvir a música e ler os versos traduzidos para o português.
Procure sentir como as nuances da música acompanha os versos!
Venite Populi
Seguimos com mais um exemplo da Música Sacra de Mozart: Venite Populi, outra peça curta, com cerca de cinco minutos de duração.
Ela tem uma forma ternária, ou seja, tem três partes bem distintas, que podemos perceber claramente.
A primeira parte do texto conclama todas as pessoas, de todos os lugares, mesmo os mais distantes, a vir e admirar uma nação tão grandiosa, que como nenhuma outra, tem o seu Deus tão próximo e tão presente.
A repetição insistente da frase “Venite Populi” – Venha, povo – tem realmente um caráter de chamamento.
Aliás, um chamamento cheio de alegria e entusiasmo.
A segunda parte – a parte central da peça – tem um caráter muito diferente: é solene, reflexivo.
O texto aqui fala mais uma vez da da Eucaristia, a lembrança da última ceia, e a consagração do pão e do vinho como corpo e sangue de Cristo.
Na terceira parte da peça voltam o entusiasmo e a alegria iniciais.
O texto diz:
Portanto, vamos festejar, com o pão da verdade e da sinceridade e com o vinho da alegria eterna.
No finzinho da peça ouve-se novamente o chamamento inicial: Venite, populi, venite.
Laudate Dominum
Vamos agora a uma experiência musical totalmente diferente das peças que ouvimos anteriormente. Nesta próxima peça não há modulações destinadas a produzir grandes efeitos dramáticos.
Em vez disso o que temos é pura melodia acompanhada, melodia da maior beleza, do mais perfeito contorno.
É isso mesmo: contorno. Podemos pensar em uma melodia como uma linha que sobe, desce, dá voltas, saltos. Por isso nós músicos usamos com frequência a expressão “linha melódica”.
Essa peça, do jeito que foi escrita poderia sem nenhum problema fazer parte de uma ópera, se o seu texto fosse substituído por outro. Ou poderia ser o segundo movimento de um concerto, se em lugar da voz tivéssemos um instrumento solista.
Aliás, a peça tem uma cadência – aquele momento em que a orquestra para e o solista exibe sozinho suas habilidades técnicas e instrumentais – um procedimento típico dos concertos para instrumento solista e orquestra.
O fato de não haver modulações dramáticas não contraria o texto, pois ele também é sereno.
Ele diz:
Laudai o Senhor, todas as nações
Laudai o senhor, todas as pessoas.
Pois ele confirmou
sua misericórdia sobre nós.
E a verdade divina durará para sempre.
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo,
como era no princípio, agora e para sempre,
por todos os séculos,
Amem.
Misericordias Domini
Eu costumo dizer que uma maneira bem eficiente de aprender é comparando coisas opostas. Vamos fazer isso agora. Essa peça que acabamos de ouvir é, como eu disse há pouco, uma única melodia acompanhada por orquestra e órgão.
Já a peça que vamos ouvir em seguida apresenta o oposto: contraponto cerrado, ou seja, várias linhas melódicas simultâneas se entrelaçando.
A peça toda é uma formidável construção contrapontística, ou polifônica, como também costumamos dizer.
Mas há vários pontos em que Mozart faz todas as vozes cantarem em bloco, evitando a polifonia.
Esses pontos são muito curtos e têm por função separar uma seção de outra, do mesmo jeito um ponto final separa um parágrafo de outro.
Esse “ponto – parágrafo” acontece várias vezes na peça.
Quanto ao texto, era usado com frequência no período da Páscoa Cristã, e é extraído da Salmo 33 ou 32: A Terra está plena da Misericórdia do Senhor.
Sonata de Igreja em dó maior, K329
Em 1773, quando estava com 16 anos, e ainda vivia em Salzburgo, Mozart foi indicado para o cargo de Domkonzertmeister, ou seja o líder da orquestra da Catedral da cidade.
Durante o período em que ocupou esse cargo o jovem compositor escreveu várias peças puramente instrumentais para serem usadas em momentos especiais da liturgia.
Seria uma situação semelhante à que temos hoje por exemplo durante a comunhão; enquanto as pessoas comungam, alguma música de fundo é tocada. Ou durante um casamento, em que também uma música instrumental pode ser tocada durante a bênção das alianças.
Ele chamou essas peças de Kirchensonnaten, ou Sonatas de Igreja, em Português.
Vamos ouvir uma delas, a Sonata de Igreja em dó maior, K328, escrita em 1779, um pouco antes de mudar-se definitivamente para Viena.
Quem nunca ouviu essa peça vai perguntar: ué, maestro? Isso é música de Igreja? Parece mais uma sinfonia!
E a pergunta terá todo o cabimento. Trata-se de uma peça puramente instrumental, sem qualquer alusão a algum texto religioso, de caráter leve e alegre.
Um típico entretenimento musical do século XVIII. Mas não estranhe: esse tipo de música era sim ouvido nas igrejas de muitas cidades europeias daquela época.
A peça tem cinco minutos de duração, é construída em apenas um movimento, e foi escrita para orquestra.
Exsultate, jubilate
Como vimos até aqui, Mozart utilizou em sua produção de música sacra os materiais e estilos mais diversos: contraponto altamente elaborado, digno de J.S. Bach; as mais belas melodias em estilo italiano; música que sublinha fielmente o texto religioso, de sincero espírito devocional, ou, ao contrário, puro divertimento musical.
Por isso a sua música sacra sobrevive hoje nas salas de concerto, independentemente de sua intenção religiosa.
E eu não posso terminar este texto sem mostrar a vocês uma obra sua que é tocada com frequência, e mescla essas vertentes todas que eu acabei de descrever.
Trata-se do moteto Exsultate, Jubilate, para soprano e orquestra.
Ela foi escrita em 1773, quando Mozart estava com 17 anos, e encontrava-se em Milão. Ele estava no final de uma longa viagem pela Itália, em que seu pai cuidou para que ele aprendesse com os maiores mestres italianos de seu tempo.
Lá em Milão Mozart conheceu um cantor castrado, Venanzio Rauzini, de quem tornou-se amigo. A obra foi escrita para ele.
Ela dura cerca de 15 minutos e é dividida em três movimentos, exatamente como se fosse um concerto para instrumento solista e orquestra.
A 1ª parte é rápida, e tem todas as características de um 1º movimento de concerto, incluindo uma cadência.
O 2º movimento é lento, uma belíssima aria precedida por um recitativo
O 3º e último movimento é novamente rápido e muito alegre.
É uma peça que une de maneira muito feliz características da música sacra, da música de concerto e da ópera.
Espero que tenha gostado deste post!
Saudações Musicais!
Cada obra linda… Uma mais bela que a outra.
Que bom que gostou! Fico muito feliz!
Um abraço musical!
Laudate domingo, é de uma beleza ímpar… A interpretação do jovem cantor é fantástica.
Olá, Sérgio, obrigado pela mensagem.
Concordo com você, é muito bonito mesmo.
Um grande abraço!